sexta-feira, janeiro 28, 2005

Memória Viajante

Raramente viajo de comboio, e faço-o apenas em períodos de lazer. No meu imaginário, os comboios são brinquedos que, só em adulto, tive oportunidade de utilizar a sério. Vivo numa ilha montanhosa, e nem as distâncias, nem o relevo se configuraram para esta solução de transporte. Outrora, existiu um cá na cidade, na altura única. Agora proliferam, mas carris, nem vê-los. Carros, esses cirandam por aí como formigas desconcertadas e acometidas por um siroco. Comboios mesmo, só nas lojas de brinquedos: perdidos entre bonecos em forma de monstros e de robots grotescos. Mas voltando aos comboios, sempre me deliciei com a suavidade com que serpenteiam as encostas, as planícies, pelo espreitar de povoações, recortando os vales e ladeando os rios, vogando terra afora, sem regresso anunciado. Continua a ser uma experiência única viajar de comboio. São paisagens que se sucedem, estações que ficam para trás, pessoas sentadas à espera… muitas vezes sem se saber de quê? São fluxos frenéticos de entradas e saídas de desconhecidos. De outras azáfamas. Observo as expressões das pessoas, os gestos, as suas movimentações que me suscitam curiosidade, os seus fitos inimagináveis; acolho a oportunidade de entrecruzar olhares, e a tentativa de descerrar mistérios daquelas vidas que coabitam comigo aquela carruagem. Umas entram, umas observam, outra pega um livro: aquele que nos leva, quase despudoradamente, a olhar de soslaio na ânsia de ler o título, identificar o autor, e desse modo intrometer-nos naquela existência que, à frente ou ao nosso lado se instala. Aquela curiosidade ousada de saber algo sobre aquela gente, reflectido no tipo de leitura. Ou noutro movimento despretensioso, na indumentária que veste, ou na bagagem que reflecte indícios de actividades ou profissões, sinais que mostrem a aridez da vida. Ainda o incómodo de um olhar que se fixa no nosso, e que naquele hiato, se baixa como que envergonhado pela intromissão. Como se os olhares se lessem mutuamente, e no seu prolongamento desnudassem a vida.
Algumas vezes deixamo-nos embalar, e entre o estrépito abafado que espaçadamente ressoa dos carris, um torpor hipnotiza-nos por lassidão, ficamos sonolentos, mas, do vazio do sono à espreita, surgem inesperadas situações que nos despertam, nos arrebatam de chofre. Recordo-me uma vez de uma velhinha sorridente e simpática que entrou no comboio com um cão, e foi advertida pelo funcionário que, incautamente ou não, quando se apercebeu da situação, o comboio já reiniciara outra de muitas partidas. Encheu-se de indulgência e rendido à magnificência da anciã, transformou o seu dever em permissividade daquele interdito, aveludado por expressões vizinhas de comiseração. A senhora sorria, e na sua expressão afectuosa e jovem, persuadiu-o. O comboio trilhava num meio rural, e o cheiro que de fora refulgia, era campestre, fresco e perfumado.
Uma porta abriu-se, e de outra carruagem, apareceu uma jovem, uma menina de traços tão delicados, de expressão muito doce e um sorriso assaz contagiante, que, ali mesmo, defrontando-se com a velhinha, estacou. Por essa altura, a velhinha ainda se interrogava aos seus botões, sobre a precariedade da vida imputável nos seus irreflectidos actos, um dos quais, o de trazer com ela o seu fiel amigo. Talvez o único que se dignava a acompanhá-la. Mas a jovem e a velhinha, mal se olharam, gerou-se tal empatia, que de imediato esta sentou-se ao lado da anciã. Sorriram-se. O cão estabeleceu o elo que facilitou o prelúdio do diálogo. A menina não se coibiu de acariciar a senhora com o olhar, e aquela candura vibrante arrebatou-me. Era tão terna, e aquele inusitado contacto entre distintas gerações, comprazia-me face à distância que infelizmente existe na realidade, consubstanciada na frieza, no desrespeito e no desprezo para com os mais idosos. Mas aquela menina ali estava, de olhar intenso, fervoroso, dotado de uma doçura invulgar. Era daquelas pessoas que nos contagiam com uma aura que nos inculca de magia e esperança na vida, no admirável mundo que nestes insólitos momentos, nos revigoram a esperança e nos retocam as fissuras do pessimismo que corroem a nossa alma. Foi assim, distante da minha língua, que assisti a este exemplo inolvidável. A conversa entre as duas, tomou contornos tão enleantes, que as duas redireccionaram-se uma para a outra, enquanto a menina inebriava com a sapiência cândida da velhinha. Discorriam num intenso diálogo, intervalado por pequenos afagos carinhosos com as mãos.
E não foi inocente a perseguição distraída que, quase involuntariamente, fiz à menina, enquanto esta se ia perdendo por entre a multidão, no afastamento buliçoso da estação da capital. A expressão da menina irradiava um magnetismo miraculoso. Procurei fazer perdurar aquele momento, enlevado por aquela grata contemplação.
Sempre que recordo a menina, sinto que minha expressão muda, que o mundo avança, que o sonho é magia, tão real como aquele rio que ladeou o comboio nessa viagem, espelhando a doçura daquele olhar enternecedor que me tocou, tal como outros ainda tocarão. É pelas provas de afecto que emerge a essência da vida, e é por elas que tudo se move, seja em memórias de viagens, ou em inesperados momentos do nosso fugaz quotidiano.
Até um dia jovem menina.

Duarte Olim

domingo, janeiro 23, 2005

A Casa dos Sorrisos


 Posted by Hello

Até à época, sempre tive a curiosidade de entender a disposição espacial das casas, dos prédios, a lógica do ordenamento urbano, e as arquitecturas inerentes às suas formas. Certo dia, o meu olhar foi invadido por uma fachada tão bela e envolvente, que despertei para algo impensável até então. Parei bruscamente, e decerto que foi indisfarçável o meu pasmo, perante o resplendor daquela cor, da alegria que emanava daquele prédio. Aquela fachada inebriante, meticulosamente cuidada, apelava ao meu olhar e extasiava-me. Dei por mim a sorrir instintivamente. Admito que a minha predisposição para esta descoberta, tenha influenciado o deleite e a forma como me arrebatou. São nestes momentos que nos apercebemos que, por vezes, quando vagueamos sozinhos por uma cidade, o nosso estado contemplativo eleva-se e a nossa sensibilidade apura-se para as pequenas coisas, pequenos nadas que, de outro modo, passariam despercebidos. Vacilei. Poderia o clique da minha máquina fotográfica, violar a magia daquela casa? A sua alma? Não! Pensei. Caso contrário, teriam sido tantas as violações que, a conotação daquela casa seria certamente outra, assumidamente menos abonatória.
Não, nunca imaginei que uma moradia tivesse sentimento; que um prédio exteriorizasse uma expressão própria, um estado de alma. Dei por mim à procura da melhor forma de caracterizar a expressividade que brotava daquela fachada. Olhei à volta, e nos contrastes, imaginei que as linhas que a definiam, eram como uns traços de um rosto de fisionomia própria. Contudo, aquele rosto sorria. Continuei a caminhar e na observação de outras casas e prédios, associei o desgaste, as oxidações que ressaltavam das fissuras, varandas e janelas, como lágrimas de uma expressão triste. Provinham de casas lúgubres, fachadas cuja arquitectura era indefinida, de contornos ilógicos. Noutras vi confusão, ansiedade. Na minha memória, vi algures no meu país, algumas fachadas igualmente belas, mas algumas recentes que expressavam terror, medo, total fealdade.
Retomei mais adiante a rua onde havia feito esta descoberta graciosa e aprazível. Curiosamente, notei que se encontrava ladeada por outras igualmente alegres e de rostos expressivos e acolhedores, e, questionei-me se porventura os moradores daquela casa tão bela teriam correspondência com a beleza que dali procedia. Seriam os seus habitantes, igualmente afáveis, sorridentes e calorosos? Deixei que a oportunidade o permitisse, passeando descontraidamente nas imediações. Deambulei na vizinhança, fazendo tempo, sempre à espreita de um fortuito morador, de uma casual agitação na porta. Passaram-se longos minutos, talvez horas. O crepúsculo descia, o frio era lancinante e, na inadaptação àquele gelo, fui forçado a abandonar aquele local sem que a dúvida fosse alguma vez desfeita.

Texto e Imagem: Duarte Olim

segunda-feira, janeiro 17, 2005

A Lâmpada da Vida

A centelha, que separa a euforia do desânimo, é tão débil como a certeza deste pestanejar intermitente do olhar. Julgamos a nossa estrutura psíquica inabalável, porém, num momento tudo se transforma, e, apavoramo-nos com o nosso aspecto, com as convulsões em nós operadas, como se fôssemos uma lâmpada que à pressão de um clique, ou ilumina, ou nos deixa irremediavelmente às escuras. É aflitivo o pavor de fundirmos, e num apagão tudo encerrarmos.
Tantos planos, tantas metas, tantos sonhos. Para quê? E agora?! Tanto tempo desperdiçado em nada, a produzir coisíssima nenhuma. E aquela luz que iluminava... de repente, uma avaria, uma falha eléctrica, e tudo se perde, tudo se escoa inapelavelmente entre as nossas mãos, aquela glória efémera de ontem. Não temos dívidas, pagamos a luz, mas parece que o dinheiro não se compadece, porquanto o palco da vida rui sob os nossos pés. Mas, de que vale o dinheiro? Que significação tão obsoleta.
Num ápice inenarrável, o nosso passado irrompe à nossa mente em curtas-metragens torrenciais, num esgar que projecta a nossa vida. Tanta, tanta vivência esbanjada, tantos momentos solitários, quiçá promovendo o ócio, que, muitos consideram uma forma de espiritualidade. Mas, se é espiritualidade, porque não sustém os nossos alicerces? Estes abalos sísmicos da nossa condição humana! Serão eles lampejos que desnorteiam a nossa caminhada, alertando-nos para a mortalidade da luz? Talvez reorientando-nos.
São estes estigmas que nos testam e permitem derivações nesta luta. Despertam-nos os sentimentos e sensibilizam-nos para a finitude deste aqui. De través miramos o espelho, assistimos a tanta atribulação. Suamos frio, alvoroçamos pela casa, ingerimos algo, fingimos que ainda não acordamos e lá voltamos ao espelho. Pavor! Somos estes!, e o espelho não engana. Lavamo-nos e revidamos aquela figura no espelho, aquela imagem ausente. Este espelho, outrora, nosso aliado nas boémias juvenis e nos tempos áureos de ontem, mas que agora confronta-nos com outra realidade. Seja ela o inquietante aparecimento de uma indelével ruga, de uma inusitada intumescência, ou umas entradas de calvície que creiamos serem espontâneas só nos outros. Sintomas de uma hipotética doença? E qual a verosimilhança de asseverarmos que não nos apavoramos com o fim? Tão verosímil quanto a afirmação do combatente que, atesta não ter medo da guerra, apesar de nunca ter estado num campo de batalha.
E, se enquanto a lâmpada iluminava, não aproveitávamos, e agora que a corrente vacila? Escurece e neste enegrecimento dissipam-se os sonhos. Ansiamos a luz, mas o quotidiano prega-nos estas surpresas e este filamento que nos prende à Vida, é tão frágil e de súbito, esta luz brilhante que ofuscava e nos insuflava de energia, esvai-se e é o pânico. A nossa identidade imiscui-se no vazio dos perdedores. Ela já não é mais. Somos relegados à nossa fragilidade, e o filamento periclitante avisa-nos que a Vida é este halo que caprichosamente nos guia. Tão frágil como esta pedra dura que aqui na praia pensa estar incólume, mas que, ao ribombar de uma vaga mais forte, é projectada pela corrente.

Duarte Olim




quarta-feira, janeiro 12, 2005

O Basalto da Ilha


 Posted by Hello

Era uma rocha sólida, negra, espessa, cujo negrume não fazia ricochete à luz. Era o basalto, nessa sua dignidade, essa rocha que orla(va) a ilha: forte, resistente e inexpugnável. As suas formas eram diversas, influenciadas pela sua génese, e pela acção dos fenómenos erosivos. Junto à costa, emergia em ilhotas; noutros casos o seu surgimento ficava à mercê dos caprichos das marés. Formava outrora o litoral de uma ilha vulcânica e a sua coloração na paisagem, permitia que a transição do azul do mar, para o verde da montanha, se fizesse de forma harmoniosa.
Na fisionomia litoral, ele rareia, e tem sido ultrajado e substituído por fastidiosas e agressivas plataformas, inestéticas, grosseiramente implantadas, constituídas por betão. Estas estruturas ostentam faces que roçam a tirania e fealdade de quem as concebeu, pela avareza, pela mentira. A sua cor, insípida, agride, mitiga o belo de forma impiedosa.
Foi um dia que a tirania dos imbecis, com a ajuda resoluta da tecnologia, foi corroendo, perfurando, soterrando o basalto. Arquitectou-se avulso, de modo indigesto e ardilosamente os imbecis defendiam que se devia alterar para melhorar, permitir acessos, e mais uma panóplia de argumentos fanhosos, insidiosos e malévolos. Dirão que o basalto possui a cor das trevas. Cor medonha, quiçá!? Mas assim como este manto negro protege a costa de intempéries e do mar revolto, da mesma forma as trevas ocultam os indefesos nas noites onde o perigo espreita.
Verões passaram em que o som do mar substituiu-se por ruídos de máquinas, que nem serenavam as aves marítimas que, às falésias, vinham nidificar. Esta acção revelou-se assombrosa, e os revoltosos com tamanha destruição, sentiam-se impotentes para contrariar o poder da maquinaria do Homem Moderno. Eram acusados de retrógados, pasme-se!
Que saudade me consome quando revejo imagens arquivadas em minha memória, daquele litoral deliciosamente recortado, onde pontuava salpicos de pedras basálticas, que congeminavam o mar à terra, e a esta última protegiam. Aqueles seixos que ao embate das ondas, retiniam, e revolviam-se com estrépito no recuar da água.
Que vergonha deparar-me com essa expressão vossa, visitantes de agora, contraposta com os de outrora, que, no seu deleite, não disfarçavam um semblante embelezado pela natureza límpida que, em suas faces, tão belas paisagens espelhavam.
É tarde, mas o mesmo mar continua a atingir a costa, melancólico, manchado, enconjurado. Tal como este basalto que, com bonomia me observa, mas que já não consegue acender-me a alma de esperança, essa que me caracterizava outrora.

Texto e Imagem: Duarte Olim

quinta-feira, janeiro 06, 2005

A menina dança?

Só com o João Duarte! – respondeu a menina.
E eu que sou um zero – duas casas à rectaguarda e uma à esquerda –, no assunto… porque de danças, parecem-me mais propensas às meninas – assevero eu. E a despeito disso, a beleza feminina parece mais apta e vocacionada a harmonias corporais, a movimentos sincronizados de coordenação e passíveis de acompanhar a magnitude sonora de uma Big Band. – Não concorda menina?
– Não, venha dançar comigo que eu ensino – contrapôs a menina.
E eu retorqui-lhe com reverência:
– Mas menina, eu não sei dançar! A menina olhou-me enternecidamente, sorriu com aquela expressão cândida que, de tão comovente, desnudou-me a vergonha e fui impelido por aquela candura, em sua direcção.
Ouvíamos Frank Sinatra acompanhado por aquela Big Band imponente na sua cadência rítmica louca. Falo obviamente da Orquestra de Count Basie. Mas podia ser de outra, não tão arrojada como a de Basie.
Aquele swing contagiou-me, e enleado pelo aconchego da menina, consegui soltar-me (na dança, oh mentes perversas!) e ofusquei a ideia de que não sabia dançar. No final:
– Foi bom menina! – admiti. Ela voltou a sorrir e disse-me: – a dança é como a fotografia: quando uma paisagem é bela, até o fotógrafo mais amador faz um belo retrato. Na música sucede o mesmo: quando a melodia é arrebatadora e o ritmo inebriante, a música não nos faz dançar, mas, é ela que nos dança a nós.
Eu na minha modéstia, anui com a cabeça, e preferi não refutar aquela sua oportuna comparação, porém, estava convicto que a menina dançou-me a par da música. Existem meninas assim. Pedro Barroso, na sua voz trovadoresca diria: “é tão difícil, encontrar pessoas, assim, bonitas”.

Nota: Para quem desconhece, “a menina dança” está de volta à RDP, não com o João Duarte, mas sim com o José Duarte que é autor, realiza, apresenta e dança a menina.

Duarte Olim


domingo, janeiro 02, 2005

Lisboa



Nestas saudades que sobejam de ti Lisboa,
Dessas ruas, desses bairros, das vielas,
Do teu povo tolerante e vadio.
Que tristeza,
ouvir este fado amargurado
Teu sentir!
Que no meu se mistura
Pelo enlevo que tenho
de ti com ternura.

Dar-te graças por ti,
Pelo que em mim operaste.
Quando,
cheguei menino e moço,
E tu Lisboa,
menina e moça me recebeste,
para a vida me acordaste.

Num beijo jurado
Amor foi feitiço.
Inseguro e com medo
De te deixar um dia
E tua magia perder,
Para além da ponte
Prá lá do horizonte.

Pelos poetas leio-te,
De mim jorra o sentimento,
Mas em palavras não consigo
Descrever teu corpo,
Teu perfume ébrio,
Tua sensibilidade de mulher ardente.

A tua alma é sadia,
E o Tejo tolda-te de graça,
Enquanto teus castelos te protegem
A teu lado me regaço,
Nesta saudade infinita
Que por ti me guardo. Posted by Hello

Poema e Imagem: Duarte Olim