sábado, dezembro 31, 2005

Alma de Nada

Esta noite não dormi. Peguei num papel e comecei a rascunhar uma carta. Fi-lo para um destinatário incerto: para a minha infelicidade, ou para ninguém. A morada? Desconhecida. Talvez para o Senhor Ninguém dentro de mim. Esse interior de nada, esvaziado de tudo. De sonhos, de projectos e ambições. Restou nada. Dentro não está ninguém. A silhueta que me configura um corpo, é uma tez ressequida que sobeja do nada. Petrificou em reacção com o exterior, por esse nada ser tão nada em relação à alma do mundo. É a química inverosímil do sentir.
Vogo à mercê do tempo. Da leve brisa. A nada resisto. Derivo na crista das ondas de um ciclone depressivo. Que o vento me levasse para longe, em busca da essência perdida. Mas onde encontrá-la? Resta esta desoladora solidão. Nada de nada. Ao longe o mar. Queria ir ao seu encontro, mas o mar não gostaria de me ver assim. Sei que lá, inalava a maresia; alagava-me de água salgada. Depurava o meu nada. Enchia-me de mar. Contemplava o mundo com outros olhos.
Olhos de água do mar. Azuis como o céu.

quarta-feira, dezembro 28, 2005

Aceno



Deito-me na lisura deste litoral,
Na berma de um lago de sal,
Com inusitados cisnes marinhos.

A harmonia das águas,
Rumoreja idílios de saudades,
Envolve-me o abraço do desassossego
Longínquo,
Entrecortado pelo canto das aves marinhas
Que no aceno sonoro,
Testemunham a dor da minha ausência

Solto-me absorto neste momento
Apoiado pela ternura dos teus braços
No abraço que te quero dar desta distância.

Foto e poema: Duarte Olim

domingo, dezembro 18, 2005

Fortim



Do cume do pico
Assomou, a mando do zelo
O fortim dissuasor
Das invasões de outrora
Retidas nas memórias destes muros,
Erguidos por medos
Fitos de vigia e defesa
Que o povo alçou,
Contra os saques de vergonha
De investidas de corsários e piratas
Barradas por galhardia
Precavidas por este forte
E por outras valentias.

Existiu,
Virado para o mar,
De janelas atentas
Olhos projectados no horizonte
Vigilante nas horas soturnas da noite
Fixado nas luzes que tremeluziam na distância
Que, por estrelas se confundiam
Da arriba para o mar,
Do penedo para o pico
Deste forte ataviado de ermos postigos
Frios como a nortada
Que entranha nesta rocha crua
Como o perigo pavoroso
Que trespassa a alma
E angustia o povo.

Sucumbiu,
Erguido neste monte
Espraiando para o mar
As paredes escuras, desnudadas
Esta maresia que corrói lentamente
O esqueleto basáltico que sustenta
Até a queda paulatina
De pedra sobre pedra
Desfigurando o rosto de abrigo
Desatento,
Martirizado pela penumbra do abandono
Sobranceiro do mesmo rumorejar deste mar,
Deste ciciar que devolve a alma
Deste tecto desabado que devolve o céu.

Foto e Poema: Duarte Olim
Publicado em Revista Ilharq Nº5

terça-feira, dezembro 13, 2005

Poeta Errante



Poetas,
Erróneas personagens da vida
Que da imperfeição, cadenciam palavras soltas
Algumas fingidas,
(Tal como confessou Pessoa)
Outras, sinceras e iguais ao poeta
Discorridas por um sentir profundo, uma inquietação sôfrega
Pessoa una, rara
De uma genuína essência
Que indaga o tempo, desafia as convenções,
O frenesim desumano das coisas terrenas
Rebaixadas pela integridade altiva do ser
Homem livre…
Que exacerba o destino
E dos versos lidos ressalta
A impudência velada que a ilha não reclama
Por ociosa vontade, ingratidão insana.

Acorre,
No obscuro da noite,
O rastro do foragido poeta
Do mundo pérfido enojado
Humilde…
Some-se de mim, e reaparece ubíquo
Em cada esquina, nos bairros ermos
Este poeta que me enlevou
Livre como um pássaro de uma ilha distante
De voar resoluto, nas vielas sombrias da noite lisboeta
Olhar ausente da distância
Afável,
Despretensioso no trato
Mensageiro do mundo
Perdido,
Achado nas flores das bermas
Hortênsias que em menino
Ataviaram o teu caminho
E, hoje
Que homem és tu? Jovem!
De lugar nenhum
Solitário, amigo
Coberto de exuberantes princípios esquecidos
Guardados por simplicidade,
Na maresia do mar revolto que te bafejou a alma
Nas palavras pungentes dos teus livros,
E no privilégio de quem te ouviu na passagem
Enquanto os cacilheiros vogavam no Tejo
Melancólicos de candura…
Como os versos profundos
Que a voz do vento nos traz
E, reverente, expresso a minha gratidão:
Obrigado poeta.

Foto e poema: Duarte Olim