quinta-feira, janeiro 24, 2008

Gaivotas do Islão


Foto tirada daqui

Valeu o sistema arcaico de desembarque para me situar no Oriente e esquecer essa Lisboa das travessias do Tejo. Ali nem se atravessava o rio, tão-pouco se fazia uma ligação simples entre duas margens. Ademais, o trajecto unia rumos dissemelhantes do Norte e do Sul. Os sabores da Europa e da Ásia confundiam-se naquelas margens de mar, e do dourado (golden horn) até ao Estreito, levei uns minutos comprazedores de caminho, contemplando por entre as gotículas que salpicavam a janela, que teimava em tornar a minha esguelha baça e deformada. O tempo insistia em presentear-me chuva. Viajava em mais um dos muitos barcos turcos que recortavam o Bósporo, marcando a sua tona de traços deléveis que à passagem, se abriam como silenciosos fechos eclair. No convés reuniam-se pessoas movidas por idas e regressos que não descortinei, destoando indivíduos como eu, sem credo nem pouso, pouco destros para uma plena idiossincrasia do frio que se adivinhava oriundo do Norte; ou numa relação obscura com o Islão que reinava nesta paragem. Este revelava-se por indumentárias características, dominadas por um negro fatigado ou por lenços garridos que mulheres de todas as gerações ostentavam na cabeça. Nos homens este sintoma era observado em resquícios de chapelaria característica que se cruzavam episodicamente nas ruas, acompanhados por recortes e proeminentes barbas que sobejavam do peso da fé religiosa ou da reverência que esta impunha. Havia outros que cultivavam a crença, mas sem os trejeitos ou sinais de fundamentalismo citados.
Num exercício mental, regressei ao barco. No convés aberto da popa, abrigadas sob uma precária cobertura, agrupavam-se mulheres jovens, de lenços na cabeça, espampanantes na noite, graciosos à luz, difusa naquela tarde outonal, emoldurando a cidade de nostalgia parda, enquanto os lenços emolduravam rostos femininos de enlutada beleza. As imposições castradoras exibiam uma frugalidade que, não obstante terem enfatizado o meu espanto, condoíam-me. Mas fazer o quê? Distraidamente fitei um bando de gaivotas que seguia na popa, a bombordo. Elas voavam num reboliço que compreendi resultar das porções de pão que uma das mulheres islâmicas atirava borda fora, para gáudio da agilidade dos albatrozes. Apanhavam os bocados no ar com destreza, e as poucas migalhas que pousavam na superfície das águas eram varridas por voos rasantes de fino recorte. À medida que as aves se agrupavam, sedentas de mais pão, o regozijo da mulher ampliava-lhe o sorriso, e foi vê-la descer às antípodas de criança, deleitada pelo gozo de alimentar as aves do céu, ali quase amaradas, deglutidas pelas margens da cidade. Não foi capaz de conter o pudor que lhe cobria a cabeça, exibindo um sorriso desdentado que a alegria não susteve. O barco vogava sob a égide de um enxame de aves esfomeadas, ou benévolas na oferta de uma sessão acrobática gratuita. O delírio só amainou quando o barco esboçou as primeiras manobras de atracagem. As aves debandaram sem se notar, quiçá fruto dos cânticos que irromperam na atmosfera circundante, oriundos de todas as mesquitas da cidade. Ecoavam de forma dorida, num cantar avesso à alegria, melancólico, pesaroso e monocórdico. Disputavam-se sem lógica, ressoando até ao longe mais distante. A disputa fazia-se de mesquita em mesquita, proveniente de altifalantes articulados em colunas altíssimas rematadas em forma de ogiva. As vozes repercutiam-se e cravavam na alma, não havendo como escapar-lhes. No desembarque, a mulher das gaivotas exibia um semblante circunspecto, e por esta altura as gaivotas certamente planavam sobre massas de ar quente, aquelas que lhes garantiam uma ascensão sustentada para os céus.

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Oceano Atlântico



Como é o Oceano Atlântico? Foi desta forma que me surpreenderam, nesta pergunta inusitada e assaz impertinente. Franzi o cenho e nem balbuciei resposta. Assim reagiria se me questionassem: Duarte, de que é feita a tua essência?
Para quem nunca viu o Oceano Atlântico, este, apesar de secundado em tamanho, perde as fronteiras ao alcance humano. Não sendo Pacífico, foi palco de investidas e incursões ousadas, de cruzadas e descobrimentos, de guerras e aventuras. Fértil em fauna, ainda abriga no seu âmago, diversidade e recursos que lhe pilham impiedosamente. Riposta com bravura, em rebelião impotente.
Exposto à mercê de ciclones, de sóis oblíquos ou perpendiculares, sujeito a insurrectas intempéries que revolvem o manto, furacões e turbulências indómitas, a verdade é que a imensidão deste oceano retém a respiração dos que para ele espraiem o olhar. Percorre matizes azuis e pardacentas, cintila na noite, refulge de dia, e embravece contra a rocha, espumejando as suas mágoas que depura num esgar de riso. Abrupto nas profundezas, cobre o seu relevo acidentado com um azul infinito que resplandece de dia, que reverbera envergonhado na noite, sob a regência de um luar mais ufano, ou uma noite de atmosfera límpida e bucólica. Dissecando a sua essência, pode apresentar-se calmo e amigo, ledo de graciosidade, mas bravio e encerrando uma revolta que lhe pincela de pontos brancos a crosta e desenha uma orla de espuma nas bordas. O basalto resiste à onda que lhe refrigera o negrume, quando as praias douradas estão distantes, e a onda em crista desmaia no remanso do areal.
Tonificante, o Atlântico devora quem lhe subestima a força, inspira quem o admira, revigora quem a ele recorre para depurar a alma e estados turbulentos de espírito, expurgados por triliões de gotículas que estraçalham o marasmo, que esquartejam a maledicência. Observo a maresia irisada na luz, sobejando da sua fúria, e as densas camadas de humidade que me refrescam, que inalo na sua beira ou inspiro na memória quando me dista a sua presença ou me ausento de mim.
À segunda pergunta, intencionalmente esquecida, esquivo-me, apenas sei que por vezes essa essência é de mar.