segunda-feira, maio 24, 2010

A Resistência


Já resignado ao frio, rompi por Belfast e encontrei uma urbe trajando elegância, prevalecendo uma cor ocre, tijolo, que dá uma tonalidade peculiar, complementada com a organização, o asseio, sem esquecer os sinais de prosperidade exibidos que remontam ao período da revolução industrial, beneficiando particularmente esta cidade portuária. Foram muitas as actividades industriais que prosperaram na urbe.
Nas ruas as pessoas caminham sorridentes, há um semblante dominante de confiança, mas sobretudo de uma afabilidade fácil. A cidade é pouco cosmopolita, reinam os irlandeses do norte, sejam eles unionistas ou nacionalistas, protestantes ou católicos. Os motins que assolaram esta cidade, que a marcaram tragicamente, não se vislumbram nas fisionomias. Uma observação mais atenta, aliada a uma boa memória visual, revela os bairros periféricos da cidade com uma matriz arquitectónica típica, dominada pela construção baixa, em banda, predominando o tijolo. Este cenário também é possível identificar em muitas sequelas cinematográficas. As igrejas pululam e são edificadas em pedra basáltica, sobreposta, esmeradamente emparelhada, porém, não é fácil atribuir o credo, pela simples análise arquitectural. Mas a falência religiosa começa a ser visível, não fosse ela igualmente pretexto para motins e carnificina. Por isso, não se estranha que alguns templos estejam convertidos em bibliotecas e livrarias ou mesmo espaços cuja utilização não tenha nada de herético.
O museu do Ulster está instalado no seio de um Jardim Botânico modesto mas belíssimo, com espaços floridos bem distribuídos, ao contrário da nossa máxima de encher os espaços todos com plantinhas, sem abertas, num sufoco caótico que o nosso clima favorece, mas em jardim, desagrada. Mas, centrando-me no principal museu da cidade, há uma reprodução da sua história, marcada por conflitos, também afectada pela fome, por crises diversas, insurreições de vária ordem, guerras… um pouco da identidade que marcou a história do velho continente. Mas, pode dizer-se que, agora, após as tréguas do IRA, Belfast renasceu definitivamente e exibe um encanto que, apesar das marcas multinacionais presentes, ainda mantém a matriz norte irlandesa. O povo é incrivelmente prestável, desfaz-se em simpatias, é cordial, sente-se envaidecido se tecemos um elogio ao país, expressando uma gratidão efusiva. Os problemas do passado, as questões religiosas e políticas tornaram-se tabu, nesta resignação assegura-se o que todos anseiam: a perpetuação das tréguas.

Os pubs encantam, a cerveja é deliciosa, ao contrário de muita que se bebe em Portugal que mais parece xarope de farmácia para matar lombrigas. Até a famosa Guinness, que importamos engarrafada, não tem rigorosamente nada a ver com a que aqui é servida de pressão. Aparentemente é cara, mas a que servem, num generoso copo de meio litro, tem um sabor excepcional. Até pousar no balcão, passa por um processo ritualizado que, os especialistas asseveram, garante a autenticidade do sabor. Aquela espuma cremosa embevece, tal como a simpatia dos irlandeses. Então quando já estão inebriados de cerveja, cruzam-se e sorriem, cambaleando… fazem estes rituais no dia-a-dia, convivendo sem distinção, bem-dispostos, bonacheirões, sem o snobismo que caracteriza os ingleses. Desde a decoração, passando pela cuidada distribuição da luz, a música (ambiente ou ao vivo), o ar envelhecido da mobília, a atmosfera, o revestimento de madeira que dá um acolhimento especial, o estilo, a profusão de marcas de cerveja, enfim, tudo é pensado ao pormenor, tudo está disposto de forma irrepreensível para que nos sintamos bem. O visitante sente um acolhimento nos pubs, sobretudo por parte de uma geração mais velha, como se já fizesse parte do quotidiano destes lugares. Há um travo de familiaridade em cada espaço destes. A cidade é jovem e os adolescentes têm muita liberdade para se autonomizarem na noite, nos agrupamentos com amigos, na vida boémia. De Belfast guardarei a memória de ali ter começado a desvendar a essência irish. Outro Norte, quiçá mais severo e inclemente, aguarda-me, numa costa de lendas, mitos e histórias.

sábado, maio 15, 2010

Bem-vindo Ao Norte


O Norte, no nosso entendimento, é frio, cinzento, austero e inclemente. Mas esta condição geográfica, pela severidade que impõe, também pode ser ordeira, disciplinadora e sobretudo agregadora. Visitar o Norte no Verão, debaixo de um calor generoso, não me parece a melhor forma de conhecer a autenticidade deste lugar. Por isso, preferi chegar e sujeitar-me ao que pulula nesta latitude: o frio e a bruma. Cheguei arrepiado pelo primeiro, encontrei ameaças de bruma no esquadrinhar do firmamento. Ainda me interroguei porque troquei a amenidade da ilha, por outra ilha diferente no tamanho e incomparavelmente gélida. Viessem os vapores do vulcão da Islândia para temperar este frio cortante, polar, algo que detivesse esta aragem que penetra, que não encontra barreiras que a detenha. Mas depois, eis-me surpreendido com o contraste. Cruzam-se comigo e espontaneamente saúdam-me como se fizesse parte desta cruzada que sobrevive à purgação pelo frio. E fazem-no com franqueza, envolvem-nos numa dinâmica cordial que não estamos habituados. A maior agregação, essa faz-se nos pubs. Mas antes de lá chegar, cruzei-me com uma paisagem verde, humanizada, mas não tiranizada. Embora a apascentação reine em parte dos campos, o ar, embora com um travo de estrume (lembrando os Açores), é puro.
A paisagem surpreende, apela à calma, tem formas suaves, outras mais atrevidas, mas que se esvaem na planície, em encostas atenuadas pela horizontalidade, uma lisura que se espraia invariavelmente na costa. Há um predomínio de gado ovino, salpicado de cores que, nestas bandas, servem para distingui-lo, mas fui surpreendido por gado bovino, num caso particular, peludo, fazendo lembrar os bisontes que vi em westerns, além de uma abundância de cavalos felizes, sem cavalariças que lhes condicionem a liberdade, não tendo mesmo resistido a alimentar alguns oferendando erva da berma da estrada, bem mais apetecível que a remexida no interior do pasto. A compartimentação da paisagem faz-se, ora com arbustos, ora com redes, ora com fiadas de árvores, nalguns casos ficando ao critério do tojo que cresce profusamente e pincela a paisagem com a sua floração amarela garrida. Se é comummente aceite que a severidade do clima está indubitavelmente correlacionada com a forma como o ser humano exterioriza a sua afabilidade, para estes irlandeses não há nada que os detenha na manifestação de uma jovialidade calorosa que só a esterilidade das cidades consegue enquistar. Fica a dúvida no ar se não existirá uma poção mágica que desencadeie este comportamento. Chamar-se-á Guinness?