segunda-feira, abril 15, 2013

Deserto















Há quem diga que o deserto vem depois da humanidade, como resultado dos seus desvarios. Aos que ousam enfrentá-lo, teme-se que possam definhar ressequidos, ou capitular ao ataque fatal de uma cobra, escorpião ou lacrau. Mas o deserto, na sua imensidão, não é apenas morte, finitude, nem aquele lugar ermo, inóspito e pavoroso. Imersos no seu âmago, somos recompensados, porque devolve-nos o universo, varrendo toda a nossa soberba e altivez humana.
Deserto é um mar de vagas silenciosas que o vento molda, mas que também tiraniza, como se constituísse o apogeu da civilização e nele se perpetuasse a compunção, ou mesmo se aplicasse a provação divina derradeira. Quando o vento exacerba a sua fúria, desfaz o que parece erigido e dá novas formas e relevo às dunas, alevantando nuvens de revolta. Numa gargalhada faz e desfaz, enforma, estiliza, e depois destrói, sibilando em jeito de escárnio.
No deserto resgata-se o universo esquecido, ele relembra-nos que a imensidão que nos rodeia é uma luminosidade que esmaga, não pela intensidade, mas pela grandiosidade. A poluição visual urbana oculta a do cosmos, como que querendo que nos esqueçamos da nossa finitude, ou da nossa origem. Dali, da planura do deserto, na noite, o firmamento fica ao alcance de um simples erguer de braço, a eternidade ali ao virar da esquina.
Poucos ousam nele penetrar, como as esparsas pegadas o ilustram. Outras pegadas não humanas deslumbram e interrogam sobre a capacidade de adaptação à vida naquele meio estéril, mesmo considerando aqueles afortunados que, na travessia, se cruzam com um abençoado oásis. O silêncio estarrece, lacera os ouvidos, ou serve de alerta para a poluição sonora que nos rodeia. Blatera um camelo, numa cáfila em vigília, nada mais…
O deserto é a morte sedutora que dá brandura ao nosso buliçoso quotidiano. Como etapa finda dos desvarios terrenos, troça de nós, mostrando a insignificância da nossa condição, indicando que há vida, e é vida o que se contempla, muito para além da mesquinha e perversa sofreguidão por fortuna. A comunhão que o deserto intenta sobre nós, quando nele mergulhamos, desnuda-nos do sentimento da pertença, alertando para a fugaz segurança do nosso lar que, por empréstimo, utilizamos como guarida.
Aos melómanos, o deserto é o único lugar em que a natureza nos presenteia com concertos a solo. O vento é o solista, e só poucos conseguem, da lonjura, imaginar a orquestra universal que o acompanha em fundo. São poucos os que o deserto não surpreendente, superando as expectativas de todo o viajante que nele se entranha, emudecendo os mais sensíveis que não sustêm o pasmo.