quinta-feira, dezembro 02, 2004

Naquele Lugar…

O Sol projectava obliquamente seus raios, e aquela luminosidade difundia-se recortada por entre fachadas e telhados. Entardecia, e nas ruelas e becos, sentia a luz incandescente desse lugar, transformada numa brisa tépida que me acariciava o rosto.
Este lugar distante que aqui e agora percorro; estas portas que me vão ficando para trás, mas que são a entrada da vida de muitos, e dos que já foram e já não são mais. Neste deambular revisitava um passado onde a severidade do tempo deixou marcas que se expressavam pelas formas corroídas das casas, na oxidação de varandas metálicas das janelas e na tinta das vidraças que se desprendia ressequida. Um pórtico abria-se em ruínas, mostrando a pedra sadia de outrora espreitando na lisura do lugar empertigado de gravidade. Alguns musgos que o povoavam, acentuavam-lhe a rusticidade. Sob os meus pés, passos perdidos deixaram a calçada gasta, polida por anos de passagem. É este chão que me suporta e que estranhamente parece afagar meu caminhar, convidando-me a ir mais além. E a ficar. Neste além mundo.
Das janelas, olhos lassos, lúgubres, observavam o meu caminhar, e num entrecruzar de olhares, ausentavam-se timidamente, projectando-se no vazio. Eram fisionomias lívidas, expressivas e nostálgicas. Diria que estavam ali esperando… Mas o quê? Um saque à solidão que lhes aflorava as têmporas? Despojados de vida, observavam. Eram idosos que permaneciam imersos neste passado que nos acolhia de forma tímida, mas desvelando intimidades e as marcas indeléveis nas suas rugas que sulcavam as suas faces e prediziam emoções várias.
Aqui e além ouviam-se sons de vida, pássaros que chilreavam; de uma janela incerta ouvia-se o fado, aquela expressão nostálgica e pungente do sentimento que ali efervescia – saudade! O frémito do sino da capela da praça, não perturbava a serenidade do lugar. À medida que a noite envolvia o bairro, a luminosidade do dia dava lugar à luz fosca dos candeeiros que mistificava aquelas fachadas. Outros lugares ermos permaneciam nas trevas e para ali confluíam os gatos e o medo.
Continuei a caminhar, desci degraus, atravessei becos e vielas e passei numa praça onde um grupo de idosos conversava. Mais adiante, duas frondosas árvores assistiam com gravidade ao alvoroço pueril de duas crianças que corriam e rodopiavam, em perseguições ininteligíveis, frenéticas, num divertimento gracioso e puro.
Este lugar envolvia-me de mistério, e sentia nas minhas vísceras o descerrar de humanismo que há em mim, naqueles olhares clamantes, naquelas expressões que me inquietavam pela minha indiferença. O lugar era envolto de candura, por um sentimento de respeito e carinho por vidas que timidamente me observavam, distantes e inseguras. Os edifícios, esses, não tinham mais de dois pisos, nalguns casos providos de águas furtadas. A proximidade das fachadas opostas da rua promovia a união, o aconchego familiar de uma boa vizinhança. Aquele lugar não me sufocava. Nenhum ruído agredia a sua harmonia. Os pombos nos beirais perscrutavam o cair da noite com seus lamentos ociosos.
Neste passado presente, vi nalgumas portas, soleiras côncavas, um sinal dos tempos, onde a pedra que lhas constituía, se transformava em barro, moldado pela infinitude temporal daquele lugar.
Era Outono e o manto da noite tinha caído. Numa mercearia próxima, um grupo de pessoas conversava. Algumas, cá fora, escolhiam escrupulosamente as melhores hortaliças, noutro caso, alguém asseverava que esta maçã era mais saborosa que aquela ou enalteciam este legume em detrimento de outro. E aquele colorido dos produtos, embelezava aquele recanto e promovia aquele convívio buliçoso. Num estendal uma senhora de cabelos grisalhos, debruçava-se no patamar da janela e recolhia meticulosamente a roupa que tinha ficado desfraldada à brisa e ao calor do dia, acenando familiaridade a quem passava.
Derivei por mais umas ruas e notei que naquele bairro, o final do dia trazia vida materializado nas luzes que ressurgiam nas janelas. Saí daquele lugar, atravessando a rua que encaminhava para a periferia e de repente, destemidamente um som irrompeu aos meus ouvidos. Era uma guitarra portuguesa em acordes plangentes, evocando um país, a identidade remota de um povo estóico e corajoso. Senti um arrepio e fui embora.
Era noite espessa quando deixei aquele mundo submerso e vi prédios altos, avenidas povoadas de carros. Semáforos a piscarem. As pessoas caminhavam frenéticas, quase atropelando-se. Procurei abstrair-me e segui calmamente para casa, e, enquanto pensava no bairro, conseguia ouvir aquela melodia da guitarra portuguesa, ecoando em mim de mansinho.

Duarte Olim


1 Comments:

At 9:53 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Que dom que você tem de usar as palvras de forma a "tocar" o interior de quem as lê!
Parabéns!
Céu

 

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