segunda-feira, abril 15, 2013

Deserto















Há quem diga que o deserto vem depois da humanidade, como resultado dos seus desvarios. Aos que ousam enfrentá-lo, teme-se que possam definhar ressequidos, ou capitular ao ataque fatal de uma cobra, escorpião ou lacrau. Mas o deserto, na sua imensidão, não é apenas morte, finitude, nem aquele lugar ermo, inóspito e pavoroso. Imersos no seu âmago, somos recompensados, porque devolve-nos o universo, varrendo toda a nossa soberba e altivez humana.
Deserto é um mar de vagas silenciosas que o vento molda, mas que também tiraniza, como se constituísse o apogeu da civilização e nele se perpetuasse a compunção, ou mesmo se aplicasse a provação divina derradeira. Quando o vento exacerba a sua fúria, desfaz o que parece erigido e dá novas formas e relevo às dunas, alevantando nuvens de revolta. Numa gargalhada faz e desfaz, enforma, estiliza, e depois destrói, sibilando em jeito de escárnio.
No deserto resgata-se o universo esquecido, ele relembra-nos que a imensidão que nos rodeia é uma luminosidade que esmaga, não pela intensidade, mas pela grandiosidade. A poluição visual urbana oculta a do cosmos, como que querendo que nos esqueçamos da nossa finitude, ou da nossa origem. Dali, da planura do deserto, na noite, o firmamento fica ao alcance de um simples erguer de braço, a eternidade ali ao virar da esquina.
Poucos ousam nele penetrar, como as esparsas pegadas o ilustram. Outras pegadas não humanas deslumbram e interrogam sobre a capacidade de adaptação à vida naquele meio estéril, mesmo considerando aqueles afortunados que, na travessia, se cruzam com um abençoado oásis. O silêncio estarrece, lacera os ouvidos, ou serve de alerta para a poluição sonora que nos rodeia. Blatera um camelo, numa cáfila em vigília, nada mais…
O deserto é a morte sedutora que dá brandura ao nosso buliçoso quotidiano. Como etapa finda dos desvarios terrenos, troça de nós, mostrando a insignificância da nossa condição, indicando que há vida, e é vida o que se contempla, muito para além da mesquinha e perversa sofreguidão por fortuna. A comunhão que o deserto intenta sobre nós, quando nele mergulhamos, desnuda-nos do sentimento da pertença, alertando para a fugaz segurança do nosso lar que, por empréstimo, utilizamos como guarida.
Aos melómanos, o deserto é o único lugar em que a natureza nos presenteia com concertos a solo. O vento é o solista, e só poucos conseguem, da lonjura, imaginar a orquestra universal que o acompanha em fundo. São poucos os que o deserto não surpreendente, superando as expectativas de todo o viajante que nele se entranha, emudecendo os mais sensíveis que não sustêm o pasmo.

sexta-feira, junho 03, 2011

Arrebatamento

Istambul, Novembro, 2007

A impotência tomou-me. Não há máquina que capte este rodopio, o insólito que tresanda em meu redor. Desisti de registar com fotografias, detive-me numa amurada. Basta parar e observar: feições, maneiras, trejeitos, indumentárias, aparos de cabelo, o pudor da mulher, algumas insinuações de tirania machista, tudo me toma neste assombro colossal. A Ásia para lá da ponte e aqui, do lado cá, qual Europa! Esta antípoda cruza uma mistela de raças e crenças, de condutas e autenticidades que o mundo formatou noutras geografias. Em pregões oiço vendedores de rua, os outros, inaudíveis na distância, esgrimem argumentos imaginativos, outros fazem-no de forma ostensiva, quiçá compulsiva… invadem-nos, bruscamente respeitam-nos. Intrigam-se com o meu estanciar, devia imiscuir-me naquele bulício por parecer um deles. Mas, na verdade não o sou. Todavia, estou aqui para sê-lo. O mar peninsular reúne na sua margem um coro de pescadores que cobiçam a abundância de tempos idos. Talvez o que sobeje da fama. Fios entrelaçam-se, emaranham-se as canas em risque à espera do incauto. Fede a peixe, sardinhas não serão. O adocicado do ar transporta-me para outros mundos. Talvez me devolva a origem, o berço da civilização. Atrás, quase numa pose provocatória, ergue-se uma imponente mesquita. Será sacrilégio esta promiscuidade da usura com a fé? Levanto-me e vou na direcção do sagrado, embora seguro de que a minha espiritualidade não reside em templos nem nos dogmas de uma religião. Caminho enfeitiçado pela magia, envolto pelo frenesim que tem atavismos de outras eras. Esta máquina do tempo abalroou-me e mal tive tempo de me adaptar… Quase me sinto trôpego no andar, perplexo. Fui como que sugado impiedosamente por uma lamparina mágica otomana, transportando-me para um período indiscernível da história. A visita à mesquita obrigar-me-á a descalçar. Quero sentir a macieza da carpete persa nos meus pés, para que com essa percepção sensorial, acredite que tudo isto em volta é verosímil. Que depure esta nebulosa de incredulidade que me varreu a realidade, e não me apresente sultões sanguinários de saibre em riste.

quinta-feira, maio 26, 2011

São Petersburgo

Junho, 2009
Obstinado e convicto do seu desígnio, Pedro, o Grande, desafiou os peritos que asseveravam que esta zona era inóspita e imprópria para ser urbanizada. Contrariado, ousando os ditames dos consultores, ordenou, por imposição régia, que se projectasse a cidade que, em seu tributo, muito mais tarde viria a ser chamada de São Petersburgo. Fê-lo por teimosia, edificando-a numa zona húmida, alagada, pantanosa, exposta à severidade da nortada siberiana, rodeada por água da foz do Neva, do Golfo da Finlândia e dos generosos lagos dos arrabaldes. Do capricho megalómano, mundano, quiçá pueril, a urbe foi projectada como cidade, sem ter passado pela fase de lugarejo, povoado, aldeia ou vila. Acompanhou a excentricidade do Czar, mas o seu plano astuto advinha da necessidade de criar uma cidade portuária, estrategicamente situada do ponto de vista geográfico que permitiria o domínio do mar do norte e ainda asseguraria o acesso até ao mar negro através do rio Neva, ao longo do extenso Volga. Este circuito por rio desenvolveria o comércio e potenciaria a abertura do país para o mundo, colocando a Rússia na rota do comércio.
A vida boémia e desvairada de Pedro prodigalizou contactos com estrangeiros errantes, artistas, arquitectos, comerciantes e outros europeus, vindo a influenciar o futuro Czar no desenvolvimento da navegação através da aprendizagem com a escola holandesa. Foi introduzida a arquitectura europeia, os jardins geométricos franceses, a arte barroca, arte nova, arte neo-clássica, entre outras. O Czar cosmopolita, não obstante ter renegado Moscovo, destronando-a de capital de um império, paradoxalmente, é nessa metrópole que a ele lhe é prestado o maior tributo, através de uma evocação em forma de estátua. A de São Petersburgo é uma estátua equestre, na qual o Czar afronta os mares e o norte impiedoso. Quanto à antiga Leninegrado, esta está rodeada por campos e bosques extensos, irrigados generosamente por água, exibindo alguns palácios sumptuosos, de jardins amplos que remontam a esse período próspero em que a monarquia havia assentado arraiais na urbe e usava o Palácio de Inverno como a sua residência oficial. Actualmente, além de ser um dos mais importantes monumentos da cidade, é palco de arte, guardando um dos mais importantes espólios de arte do mundo, no museu conhecido pelo Hermitage. A praça, defronte deste megalómano palácio, é aquela onde ocorrem os maiores eventos festivos que São Petersburgo acolhe, como a celebração do dia da cidade que presenciei, em pleno período das noites brancas, para que a penumbra não impeça que o russo se evada numa azoada de festejos, bem regados com álcool e com boçalidade incompreensível, que o burlesco explicará, mas que o Palácio de Inverno confundirá com o Verão russo, ou um simples destempero da alma eslava, aclamando o Sol tardio.

sábado, maio 21, 2011

Assimetrias

Kiev, Maio de 2009
É importante ter, não importa como nem por que meios. O astuto, recorra a que meios forem, é o que reúne riqueza e ostenta sinais de opulência. Aqui, para uma maioria, importa projectar uma vida de prosperidade, alicerçada em bens materiais que floresçam para o exterior; valores ambientais parecem não fazer parte das preocupações desta gente. Cidadania não é uma idiossincrasia que simbolize modernidade. Acima de tudo é importante ter um bom automóvel, de preferência daqueles altos e robustos, dando direito a galgar os passeios, numa conduta que não é desaprovada pela população em geral. “A culpa é do governo” – dizem – pois deveria criar parques de estacionamento suficientes. À minha insinuação de que esses ricos deveriam ser indivíduos intelectualmente destituídos, tal como revelaram algumas atitudes na estrada, foi repreendida com severidade, apontando aqueles exemplos como modelos a seguir. Num país estruturalmente débil, Kiev certamente contrasta com todo o restante território para onde fica reservada a escória. Aqui avistam-se autênticas bombas da indústria automóvel. Remete-nos para destinos obscenamente ricos ou para locais onde as pessoas pautam a vida pela exibição, onde abundam os paraísos do jogo, as milhentas maneiras de branquear dinheiro de forma quase escancarada, os vícios, a prostituição ou a máfia. As minhas suspeitas tendem para a corrupção. A vilania tende para este comportamento e o reflexo disso são estas exibições deprimentes, ridículas, absurdas, como alguns aceleramentos boçais que algumas bombas automóveis aviltam nas avenidas, para gáudio dos que lhes querem seguir as pisadas. Não respeitam sinais nem regras, amedrontam quem passa, a própria polícia faz tábua rasa a estas infracções, assobiando para o lado para evitar represálias. Mas o ucraniano não é apenas isto. Reina aqui um povo muito afectuoso, generoso e afável. Estes sinais vêm sobretudo de alguma geração mais velha, mas não só. “Portugalia”, na sua pronunciação, desperta interesse, gera simpatia, está conotado com algum exotismo e encanto.
Foto tirada daqui
O alfabeto cirílico torna qualquer compreensão árdua; converte qualquer informação tão criptada que o melhor é simplificar procurando quem nos dê indicações muito simples como se a linha de metro que vamos tomar corresponde à cor vermelha ou à azul. Ali é tudo tão confuso. Poucas coisas são intuitivas, às vezes mais vale seguir, improvisando ou deixando-nos mais susceptíveis ao insólito ou a situações caricatas. Simplificaria deixar-me vogar rio abaixo, no sentido imposto pela corrente, como devem ter feito, vindo de montante, os três irmãos e uma irmã que fundaram Kiev. Eles simbolizam a cidade erguidos numa embarcação que, pelo aspecto, não exibe rudimentos para a navegação, pelo que deve ter deslizado o rio para jusante até ao remanso daquela afortunada margem. Na proa, a irmã liderava a façanha, daí não ser indiferente o carácter feminino desta urbe, recheada de montes e vales, de belo recorte, de linhas finas e delicadas. No seu âmago, são densas as memórias que sussurram a cada passada. Preferi evitar a severidade invernal, mas, se Zeca Afonso, na sua época, visse o fosso que separa os ricos dos pobres, consubstanciado por estas máquinas de vidros fumados, e noutras extravagâncias pouco habituais por terras lusas, cantaria em protesto: “eles comem tudo e não deixam nada”.

sábado, maio 14, 2011

Praça da Independência

Kiev - Ucrânia (Maio, 2009)

Os sinos dobram às sete da tarde, mas… não são sinos, assemelham-se-lhes na cadência, num repenicar de modernidade, de travo envelhecido que não condiz com esta praça, em cujo primor, parece não caber um campanário secular. É nela que o ucraniano se manifesta, é nela que o ucraniano celebra, é nela que o ucraniano estancia e se pavoneia; é nela que alguns, como eu, deixam o tempo sumir, libertando os pensamentos impregnados do dia, deixando-os fluir na amenidade da estação, no entardecer luminoso. De forma menos despercebida, não tão subtil como o alarme das horas que os dali se acostumaram, retinem no passeio os sapatos de salto das moças que, na cadência do andar, pautam o ritmo das horas, dos minutos, de relógios intemporais, inefáveis. Formigam por ali, esbeltas, vão no encalço do amor, da luxúria, de encontros enamorados; seguem hirtas, suspensas na elegância que irradiam, brilhando à luz oblíqua dos últimos raios solares que, aqui, ditam a alegria ucraniana à sua aparição. Na rua, as expressões do povo não fazem adivinhar que são predominantemente um povo de emigração. Vestem-se bem, as lojas de grandes multinacionais pululam e nem mesmo o nosso país rivaliza com a abundância desta oferta aqui observada. A boçalidade de alguns gestos, esparsos, destituídos de civismo, contrasta com outros que não enganam: uma postura assumidamente europeia.

Os ucranianos parecem não arcar com o pesadelo de Chernobyl, essa herança fatídica, funesta, outrora símbolo de prosperidade, agora uma mancha indelével no passado, já de si demasiado amargurado; a invasão soviética augurou-lhes o domicílio para a indústria mais poluente da ex-URSS, sina que, por uma qualquer desdita, os russos maquinaram, mas nem assim este povo mostra desprezo pelos russos. No todo, são irmãos, e nas conquistas do desporto, uma e outra vez não escondem a simpatia pelos vizinhos nas suas vitórias. Questões políticas não se confundem com as outras.
A praça tem elegância e uma imensidão que não é gélida nem revela traços de fealdade que a arquitectura soviética exibia. Ao longo do rio, assomam as cúpulas douradas, enquanto padres jovens ortodoxos e polícias imberbes parecem brincar aos adultos, fora da época do Entrudo. A aura é positiva, a vibração esboça sinais indisfarçáveis de esperança.
Os vendedores são respeitadores e não franzem a testa se o turista revela apenas interesse em apreciar a arte subjacente aos artigos que expõe. Uma senhora amavelmente explicou a sua arte e distinguiu matrioskas ucranianas das russas. A bonomia a que se dignou quase me envergonhou. Preocupava-me que estivesse a ser empecilho a algum bom negócio, mas ela, gentil, indiferente ao bulício, ia-me explicando em pormenor. E o pormenor da identidade ucraniana ficou na lonjura da cidade, por miríades de lugarejos que o país guarda e que, seguramente, devem expressar com maior clareza a alma destes eslavos.

sexta-feira, maio 13, 2011

Resgatando Memórias

Esquecidos no caderno de notas, decidi publicar alguns rascunhos, desfasados no tempo (talvez da realidade), que achei merecedores de uma leitura, depois de devidamente retocados, rearranjados e revisados. Fi-lo por interesse, para que não perca memórias de viagens passadas, enquanto os tenho coligidos em cadernos perecíveis pelo tempo e, quem sabe, pelas térmitas. Fi-lo ainda porque o retrato é demasiado estático e cru, não reproduzindo as sensações e os pictogramas que uma crónica faz reflectir. Como li num blogue da concorrência, o “mundo lê-se a viajar”. Achei que essas leituras, mesmo que pouco condizentes com a realidade por manifesta inaptidão do errante, ainda assim não deixam de expressar a minha visão (ou miopia) em momentos circunstanciais, mas que, reconheço, não testemunham, nem de perto, a total essência dos lugares. Nuns casos, estas crónicas podem reflectir emoções diversas, algumas que podem indiciar um exacerbamento desmedido, tendente a gerar interpretações óbvias que, aconselho, não sejam levadas à letra. Quem escreve por vezes tende a estes desvarios. O certo e sabido é que para destrinçar a identidade de um povo, de uma cidade, de um país, é requerido mais tempo, largos meses, quiçá anos de interacção e vivência nesse meio. Todavia, nas minhas breves evasões, não deixo de interpretar outros quotidianos, outras regularidades, os esboços que os cenários e comportamentos transmitem, para um diagnóstico que me enriqueça, e por comparação, me permita uma visão ampla da complexidade do ser humano, da paisagem humanizada, e da outra, escassa, cada vez mais delapidada pela cobiça mundana.

domingo, abril 24, 2011

No Trilho do Preconceito


Foto tirada daqui
No decurso das minhas últimas incursões europeias, das quais, nalguns casos em visita a países ricos cuja observação mais atenta permite ter uma noção de como as sociedades destes lugares evoluem e progridem, tenho identificado pormenores comportamentais interessantes, mas sobretudo mudanças nas concepções sociais que se manifestam de diversas formas e que passo a realçar: começaria pela constatação de que, em países desenvolvidos, nomeadamente do centro e norte da Europa, ter um carro não é prioridade. Privilegia-se o transporte público e nos casos em que essa possibilidade, por razões orográficas, o permite, privilegia-se a utilização da bicicleta. Por esta tendência bem definida, costumo afirmar que as pessoas com pretensão sôfrega de ter automóveis normalmente são habitantes de países em vias de desenvolvimento, na maioria meridionais. Nem sempre os culpados são os cidadãos, mas as políticas que estimulam invariavelmente o uso do automóvel. Noto ainda que, ao contrário do sul de Itália, da Rússia, da Ucrânia, de Portugal e de poucos mais, é visível o abandono, por parte das mulheres, da utilização do sapato de salto alto. Errando pelas ruas dessas cidades, estranha-se a ausência do tic-tac sonoro dos saltos, aquele que retine nas cidades lusas, embora as raparigas e mulheres que os abandonaram não deixem de vestir com elegância, com charme, mas reproduzido em vestimentas mais jovens, práticas, desportivas e alegres. Calçam normalmente sapatos confortáveis ou sapatilhas. E se há muito já me tinha apercebido de uma certa desadequação do salto com a juventude, e que o salto alto espelha ainda a submissão da mulher aos preconceitos, por ser anacrónico e prestar vassalagem ao homem, atitude que supostamente a revolução social de 1968 já deveria ter exorcizado, reflecte ainda o quão reféns são as suas utilizadoras da imagem. São reféns dos ditames de uma ditadura feroz que as condiciona e quiçá, lhes coarctam a liberdade. E retomando Barcelona, a sua modernidade revelou o que já esperava: só residualmente se observam algumas mulheres com semelhante tacão sob o calcanhar. Atrever-me-ia a conotar a inteligência de quem utiliza salto, em contraponto com as outras, mas para não ferir susceptibilidades, prefiro não desenvolver mais. É que a liberdade de escolha é sagrada e ser-se tolerante é outro sinal de modernidade. No entanto, não podia deixar de notar que existem pormenores curiosos que podiam fazer certos psicanalistas deitar no divã certos grupos para um melhor diagnóstico deste foro. Por fim, quanto maior a importância que se dá aos títulos, mais atrasado e provinciano é o país. Quando exponho que, no meu país, se tratam por Senhor Engenheiro e Senhora Engenheira, Senhor Doutor e Senhora Doutora, como se essas pessoas a quem chamamos dessa maneira fossem assim baptizadas, todos se pasmam. Para acentuar o ridículo da situação, esta denominação extravasa os muros do espaço laboral, estendendo-se no meio social, fim-de-semana fora, etc. Para eles, europeus desenvolvidos, doutores são os médicos, ponto final! Depois aquele tratamento por “você” é tão impessoal e frio… Para não falar dos que, ridiculamente se pavoneiam por ostentar uma série de apelidos emparelhados no nome. Na maioria dos países desenvolvidos, espantam-se que eu apresente quatro nomes, os apelidos de família e os outros. Agora imagine-se seis, sete, oito e mais… coitados dos que, a este vexame se expõem, por capricho dos progenitores.
Além de comportamentos ridículos e desconchavados, é neste país, na posse de qualquer poder menor, que os medíocres se agigantam e exibem os galões ou os pobres de espírito se assenhoreiam da soberba, os tais que, nem tiveram capacidade de entender o que representa o civismo, caminhando emproados, mas que se esquecem de saudar o próximo, que sentem que um sorriso para um destituído ou idoso é uma humilhação, que olham com desdém e menosprezo para os seus. Há ainda a segregação consoante a indumentária, certos espaços estão devotos a certas classes sociais e há uma clara diferenciação no trato, consoante o estatuto social. É neste país que se vive uma democracia bacoca, onde a imagem e o banal canudo, bem como as marcas, auguram um certo nivelamento na pirâmide social. Tudo isto é a antítese da sociedade exemplar, e é nesse paradigma disparatado que se insiste em continuar a viver, até que, tardiamente, nos apercebamos de quão ridículos somos. É nesta contradição humana que muitos continuam a vociferar por valores que os seus comportamentos dúbios contradizem. No meio desta chusma de “importantes”, felizmente destacam-se os que o são realmente, de forma natural e que, por coincidência ou não, são humildes no trato e afáveis nos gestos, porém, desconhecidos da maioria.


A inumanidade inflingida aos outros destrói a nossa própria humanidade - Immanuel Kant

sábado, abril 23, 2011

Ergonomia Urbana

Aprendi que as cidades são, como o nome indica, para os cidadãos. Que política deriva da palavra grega “polis” que significa cidade, entendida como comunidade organizada. Por conseguinte, política é a ciência que deve estar na génese das cidades e da sua organização. Serve este prelúdio para possibilitar uma contextualização do que é a cidade de Barcelona de acordo com estes conceitos. A excelência de uma cidade, como a que tive a felicidade de visitar, deve-se, em grande parte à generosidade do seu espaço público. E se as cidades são corpos dinâmicos que se moldam às diferentes influências, à evolução dos seus cidadãos, ao seu crescimento e sempre sujeita ao aperfeiçoamento tecnológico e edificação de novas infra-estruturas, a qualidade de vida de uma metrópole desta envergadura deve-se à qualidade e, sobretudo, amplitude do seu espaço público, sendo servido por um sistema de mobilidade moderno e eficiente. A abundância de jardins, de parques, a existência uma rede de ciclovias bem delineada que estimula os seus habitantes a utilizar este meio como forma de mobilidade, é notável. Criar uma rede de pontos providos de bicicletas públicas, acessíveis aos seus cidadãos, com preços simbólicos que permitam que uma adesão a este meio seja fácil e possibilite, quase sem custos, que as mesmas sejam utilizadas para chegar ao trabalho e dele regressar, permitindo, noutros casos, que se aceda à estação de metro mais próximo, facilitando o regresso, retira tráfego automóvel, ruído, emissões e poluição sonora e do ar, permitindo ainda poupanças de grande monta no investimento rodoviário. Depois há uma poupança inestimável na saúde pública pelo incentivo dos cidadãos à prática de exercício físico. Bem ao contrário do que se vai fazendo nas nossas urbes, dando prioridade aos automóveis, justificando com falácias que, vias de comunicação são para os cidadãos e que valorizam a sua qualidade de vida. Nada mais errado! Depois, além destas condições, a proximidade do mar, da costa, pensada, não apenas para as marinas e para o porto, mas também para a população, mantendo praias livres, abertas, amplas, a paredes-meias com a cidade, é admirável. Por todas estas razões, Barcelona é um encanto, tem um espaço público que lhe confere um lugar entre as cidades mais bem delineadas que conheci. Não admira pois, que cidadãos a viverem numa cidade destas características, com esta ergonomia, se sintam motivados a sair de casa, a praticar actividades desportivas e a privilegiar o convívio social. A excelência na mobilidade possibilita o deleite com a oferta cultural e, por sua vez, enriquece e dota os seus habitantes de ferramentas para fazer face a este mundo global cada vez mais competitivo e dualista.
Por fim, não podia deixar passar despercebido o comércio tradicional que, nesta cidade se adaptou aos tempos. É moderno, ainda promove a interacção entre o comerciante e o cliente, promovendo empatias sociais que tornam o quotidiano mais amigável e cada lojinha é um mini-museu, pensado ao pormenor, um regalo que muitas vezes nos deixa especados à entrada, sejam antiquários, galerias e nalguns casos bares decorados com arte, reproduzida em candeeiros, vitrais, pinturas e outras peças de arte de embevecer. Não obstante tudo o que uma cidade oferece de interesse, a montanha mais alta, sobranceira a Barcelona, denominada de Tibidabo, fez-me avistar outros cenários bucólicos, deles sendo refrescado por uma aragem campestre. É no encalço desses lugares que me movo, sei que é neles que a poesia encontra a sua cadência, longe da pressa assustada das urbes, que nessa agitação, parecem querer antecipar o fim.

terça-feira, abril 12, 2011

Afortunada

Quando culturalmente a nossa génese nos compagina com o fado, com a poesia que a lonjura do horizonte faz esquadrinhar na alma, acenando-nos um porvir mais afortunado que toma a feição nostálgica e faz do sentimento saudade a nossa identidade, não é fácil aceitar a mudança ou agir de acordo com outros cânones mais ledos. Incorporando este perfil, não admira nada que, por colisão entre antípodas, no encontro de massas de humor distintas, a chegada a Barcelona tenha sido molhada, debaixo de uma copiosa chuva. Só com o decurso dos dias me apercebi do porquê desta recepção. Uma cidade tão buliçosa, dinâmica, trajando de júbilo, não podia interagir bem com o fado, com uma poesia de travo melancólico. Admiti que a cidade da arte, do design, tenha esboçado estas feições para moderar o meu entusiasmo, para que, imersa nesta aura pardacenta, pudesse camuflar a sua verdadeira essência, a prosperidade que o povo catalão goza e irradia sem peias. Mas se Barcelona chorou na minha estada, esqueceu-se a metrópole que, no molhado, as cores polarizam e irradiam mais beleza e cor. Estas condições dissuadem ainda as pessoas de sair, reduzindo o fluxo de massas que é comum aqui, desde que, após os jogos olímpicos de 1992, o mundo descobriu esta urbe à beira do mediterrâneo plantada. Todavia, a qualidade de vida, mesmo sob condições desfavoráveis, não quebrou o enlevo e não impediu o formigar de pessoas na rua, uma apetência invulgar pela vida social, aquela que mais contribui para o desenvolvimento do indivíduo e lhe assegura maior felicidade, tese amplamente defendida por filósofos. Nós, por cá, não o percebemos, preferimos a companhia da televisão. Percebi que Barcelona quis que não fosse exacerbado o meu enleio com esta qualidade de tudo, mas também as entidades assim, sábias, se enganam, e o copioso aguaceiro não escondeu a simpatia catalã, a hospitalidade, o bem receber, a bonomia das suas gentes, a arte… a arte que, sob um guarda-chuva e pedindo um olhar mais atento para baixo, para evitar poças e charcos, quase fez esquecer a observação que os detalhes pedem. Aos poucos fui interiorizando a atmosfera deste lugar, o privilégio dos seus cidadãos, ou simplesmente uma certa e indisfarçável soberba de quem nasceu nesta região que clama certo tipo de autonomia, que mantém vivo um falajar distinto, que interioriza a vida de uma forma mais impenetrável, contida, mas sempre receptiva ao acolhimento fraterno. Reclama ser capital, mas não sendo do país, é-o da Catalunha.
A cidade tem uma marca profunda, indelevelmente ligada à arte e ao seu mais destacado artista – Gaudi!, mas se a urbe não quis que ficasse estarrecido com o seu encanto, na despedida prodigalizou um dia soalheiro que, em jeito de remissão, me convidava para um regresso. Despedi-me e, à medida que Barcelona se desvanecia no horizonte, as suas memórias foram-se exacerbando no meu interior. A arte que o seu maior génio imprimiu como marca, não causa prejuízo algum à magia que aquela labiríntica cidade velha já antes encerrava, e graças à chuva que Barcelona me oferendou, a aversão ao molhado das gentes deixou a descoberto reminiscências da sua rica história e do seu próspero passado. A esta distância reajo com nostalgia às suas memórias, guardo o convite para um regresso, anunciando-o para qualquer dia, quando a sofreguidão por arte me fizer esse chamamento. Até lá, ainda pedalo de bicicleta praia afora, estarrecido nesta urbe de genialidade e, irrefutavelmente, de Gaudi.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

O Embaixador da Cultura


Carlos Pinto Coelho deixou-nos. Fiquei chocado, não queria acreditar que personalidades como esta, um dia iriam deixar-nos. E que perda… A cultura portuguesa ficou irremediavelmente mais pobre. Conheci-o quando assistia ao inigualável magazine cultural “acontece”. Interagia com profissionalismo, mas sobretudo com autenticidade; a sua bonomia permitia que entrasse na nossa casa sem ser intrometido. A cultura, em vez de enfadonha, era um deleite para a vista, um alimento para a alma. Ele um dia teve esta afirmação genial: A cultura é aquilo que permanece no homem quando ele já esqueceu tudo o resto. Quando dava por mim, estava embevecido, agarrado ao programa e ao formato que o jornalista criou, coordenou e apresentou com mestria e que marcou indelevelmente a cultura portuguesa de uma década. Entretanto, foi-se envolvendo em múltiplos projectos, uns acompanhei, outros, certamente frui sem saber que por detrás da sua génese, havia uma mão de Carlos Pinto Coelho. Este homem tinha uma capacidade invulgar de interpretar a cultura, o mundo, sobretudo a vida nas suas múltiplas facetas e vicissitudes. Era genuíno, autêntico, de uma inteligência que se sobrepunha à própria inteligência. Aliava a essa autenticidade, uma bonomia que não se cansava de irradiar, que brotava naturalmente da sua essência. Era um jornalista que, no exercício da sua actividade, fazia-me sonhar com o jornalismo para tê-lo como referência. Nestes tempos, em que a memória sofre ablações constantes, não podia deixar de prestar este modesto tributo a este homem, porque fazendo-o, presto tributo à cultura que, no nosso país, está moribunda. Citei a expressão memória intencionalmente, porque sem memória não há cultura, e uma sociedade sem cultura é uma sociedade pobre, vazia, com o futuro comprometido. O “acontece” terminou por, politicamente, considerar-se o seu custo elevado. É assim que vai o país. Com Carlos Pinto Coelho, a cultura acontecia. Estou imensamente grato pelo serviço que nos prestou, arriscava a dizer que não merecemos pessoas assim. Ele era um predestinado. Depois deste legado, fica a memória, a cultura… o melhor tributo que lhe podemos prestar é cultivando-nos. E assim acontece…

terça-feira, junho 01, 2010

A Ponte dos Salmões


Mundialmente conhecida, a carrick-a-rede é uma ponte de corda e tábuas, cujo nome tem origem na língua ancestral dos irlandeses: o gaélico. Ainda permanece como uma das línguas oficiais da Irlanda, sendo este, por conseguinte, um país bilingue. Foi construída por pescadores locais para permitir acesso a uma ilhota que, irrompendo pela costa, alcança uma corrente marítima que, na época da migração dos salmões, lhes dá orientação, deixando os peixes mais incautos e gulosos, à mercê dos astutos pescadores. Todavia, o acesso destes àquele pesqueiro obrigava a riscos, daí que tivessem construído esta ponte que, pelo enquadramento e material, faz lembrar enredos aventureiros do género da saga de Indiana Jones. Eis que, com o desenvolvimento da pesca, a sua utilização passou a ter interesse para visitantes, acto contínuo até se aperceberem que o potencial turístico era enorme, revelando-se actualmente bastante frutuoso.
Mais adiante surpreender-se-ão como se pode utilizar a natureza, no seu estado natural, selvagem, para potenciar uma região e valorizá-la, com o consequente ressarcimento em riqueza e postos de trabalho. Pena que muitos tenham potencialidade para valorizar estas belezas e, de forma incompreensível, estejam a delapidá-las. Aqui, de uma ponte modesta conseguiu-se difundi-la e torná-la numa atracção turística que acolhe inúmeros visitantes; foi meritória esta sensibilidade para potenciar este recurso, aparentemente rudimentar, mas com um enquadramento ímpar que proporciona aos visitantes, um inigualável deleite.
Atravessar a ponte foi um desafio fácil, não requer equilíbrio, apenas tolerância às vertigens. O simbolismo desta travessia, aliado à paisagem envolvente, torna esta experiência singular. Fui agraciado por aves marinhas que nunca tinha avistado, e ainda por sensações que lugares assim, selvagens e autênticos, conseguem despertar.

segunda-feira, maio 24, 2010

A Resistência


Já resignado ao frio, rompi por Belfast e encontrei uma urbe trajando elegância, prevalecendo uma cor ocre, tijolo, que dá uma tonalidade peculiar, complementada com a organização, o asseio, sem esquecer os sinais de prosperidade exibidos que remontam ao período da revolução industrial, beneficiando particularmente esta cidade portuária. Foram muitas as actividades industriais que prosperaram na urbe.
Nas ruas as pessoas caminham sorridentes, há um semblante dominante de confiança, mas sobretudo de uma afabilidade fácil. A cidade é pouco cosmopolita, reinam os irlandeses do norte, sejam eles unionistas ou nacionalistas, protestantes ou católicos. Os motins que assolaram esta cidade, que a marcaram tragicamente, não se vislumbram nas fisionomias. Uma observação mais atenta, aliada a uma boa memória visual, revela os bairros periféricos da cidade com uma matriz arquitectónica típica, dominada pela construção baixa, em banda, predominando o tijolo. Este cenário também é possível identificar em muitas sequelas cinematográficas. As igrejas pululam e são edificadas em pedra basáltica, sobreposta, esmeradamente emparelhada, porém, não é fácil atribuir o credo, pela simples análise arquitectural. Mas a falência religiosa começa a ser visível, não fosse ela igualmente pretexto para motins e carnificina. Por isso, não se estranha que alguns templos estejam convertidos em bibliotecas e livrarias ou mesmo espaços cuja utilização não tenha nada de herético.
O museu do Ulster está instalado no seio de um Jardim Botânico modesto mas belíssimo, com espaços floridos bem distribuídos, ao contrário da nossa máxima de encher os espaços todos com plantinhas, sem abertas, num sufoco caótico que o nosso clima favorece, mas em jardim, desagrada. Mas, centrando-me no principal museu da cidade, há uma reprodução da sua história, marcada por conflitos, também afectada pela fome, por crises diversas, insurreições de vária ordem, guerras… um pouco da identidade que marcou a história do velho continente. Mas, pode dizer-se que, agora, após as tréguas do IRA, Belfast renasceu definitivamente e exibe um encanto que, apesar das marcas multinacionais presentes, ainda mantém a matriz norte irlandesa. O povo é incrivelmente prestável, desfaz-se em simpatias, é cordial, sente-se envaidecido se tecemos um elogio ao país, expressando uma gratidão efusiva. Os problemas do passado, as questões religiosas e políticas tornaram-se tabu, nesta resignação assegura-se o que todos anseiam: a perpetuação das tréguas.

Os pubs encantam, a cerveja é deliciosa, ao contrário de muita que se bebe em Portugal que mais parece xarope de farmácia para matar lombrigas. Até a famosa Guinness, que importamos engarrafada, não tem rigorosamente nada a ver com a que aqui é servida de pressão. Aparentemente é cara, mas a que servem, num generoso copo de meio litro, tem um sabor excepcional. Até pousar no balcão, passa por um processo ritualizado que, os especialistas asseveram, garante a autenticidade do sabor. Aquela espuma cremosa embevece, tal como a simpatia dos irlandeses. Então quando já estão inebriados de cerveja, cruzam-se e sorriem, cambaleando… fazem estes rituais no dia-a-dia, convivendo sem distinção, bem-dispostos, bonacheirões, sem o snobismo que caracteriza os ingleses. Desde a decoração, passando pela cuidada distribuição da luz, a música (ambiente ou ao vivo), o ar envelhecido da mobília, a atmosfera, o revestimento de madeira que dá um acolhimento especial, o estilo, a profusão de marcas de cerveja, enfim, tudo é pensado ao pormenor, tudo está disposto de forma irrepreensível para que nos sintamos bem. O visitante sente um acolhimento nos pubs, sobretudo por parte de uma geração mais velha, como se já fizesse parte do quotidiano destes lugares. Há um travo de familiaridade em cada espaço destes. A cidade é jovem e os adolescentes têm muita liberdade para se autonomizarem na noite, nos agrupamentos com amigos, na vida boémia. De Belfast guardarei a memória de ali ter começado a desvendar a essência irish. Outro Norte, quiçá mais severo e inclemente, aguarda-me, numa costa de lendas, mitos e histórias.

sábado, maio 15, 2010

Bem-vindo Ao Norte


O Norte, no nosso entendimento, é frio, cinzento, austero e inclemente. Mas esta condição geográfica, pela severidade que impõe, também pode ser ordeira, disciplinadora e sobretudo agregadora. Visitar o Norte no Verão, debaixo de um calor generoso, não me parece a melhor forma de conhecer a autenticidade deste lugar. Por isso, preferi chegar e sujeitar-me ao que pulula nesta latitude: o frio e a bruma. Cheguei arrepiado pelo primeiro, encontrei ameaças de bruma no esquadrinhar do firmamento. Ainda me interroguei porque troquei a amenidade da ilha, por outra ilha diferente no tamanho e incomparavelmente gélida. Viessem os vapores do vulcão da Islândia para temperar este frio cortante, polar, algo que detivesse esta aragem que penetra, que não encontra barreiras que a detenha. Mas depois, eis-me surpreendido com o contraste. Cruzam-se comigo e espontaneamente saúdam-me como se fizesse parte desta cruzada que sobrevive à purgação pelo frio. E fazem-no com franqueza, envolvem-nos numa dinâmica cordial que não estamos habituados. A maior agregação, essa faz-se nos pubs. Mas antes de lá chegar, cruzei-me com uma paisagem verde, humanizada, mas não tiranizada. Embora a apascentação reine em parte dos campos, o ar, embora com um travo de estrume (lembrando os Açores), é puro.
A paisagem surpreende, apela à calma, tem formas suaves, outras mais atrevidas, mas que se esvaem na planície, em encostas atenuadas pela horizontalidade, uma lisura que se espraia invariavelmente na costa. Há um predomínio de gado ovino, salpicado de cores que, nestas bandas, servem para distingui-lo, mas fui surpreendido por gado bovino, num caso particular, peludo, fazendo lembrar os bisontes que vi em westerns, além de uma abundância de cavalos felizes, sem cavalariças que lhes condicionem a liberdade, não tendo mesmo resistido a alimentar alguns oferendando erva da berma da estrada, bem mais apetecível que a remexida no interior do pasto. A compartimentação da paisagem faz-se, ora com arbustos, ora com redes, ora com fiadas de árvores, nalguns casos ficando ao critério do tojo que cresce profusamente e pincela a paisagem com a sua floração amarela garrida. Se é comummente aceite que a severidade do clima está indubitavelmente correlacionada com a forma como o ser humano exterioriza a sua afabilidade, para estes irlandeses não há nada que os detenha na manifestação de uma jovialidade calorosa que só a esterilidade das cidades consegue enquistar. Fica a dúvida no ar se não existirá uma poção mágica que desencadeie este comportamento. Chamar-se-á Guinness?

sábado, março 20, 2010

Limpar Portugal

Fui daqueles que, antes desta iniciativa, sentiu orgulho, admiração, prestei homenagem ao povo da Estónia pelo sucesso estrondoso da sua acção. Foram precursores, através da sociedade civil, de uma acção de grande magnitude e a todos os títulos louvável. Quando se considerou a extrapolação de uma iniciativa desta envergadura a um país como Portugal, detive-me, mas acto contínuo, acreditei no seu sucesso. Portugal dá exemplos de solidariedade, de mobilização popular por causas. Porém, Portugal inclui Regiões Autónomas e, no caso particular, uma Região que, por temperamento, costuma revelar um certo “exotismo” nas suas decisões. Vai daí, criou-se uma nebulosa no meu pensamento. Se o bem comum em Portugal é achincalhado, tão maltratado, se não temos sensibilidade para preservar o património público, como seria na Madeira? A minha relutância em relação à adesão veio a superar as minhas piores expectativas. Reporto-me apenas à freguesia do Caniço.
Não critico a organização, pois o seu voluntarismo é, antes de tudo, mais do que qualquer contribuição minha, pois acresce a ela a responsabilidade de uma coordenação que requer empenho, trabalho e muita dedicação. Fiz o meu dever cívico no turno que a minha disponibilidade permitiu. Desloquei-me ao local que serviu de ponto de encontro, na tarde que reservei para este efeito e, para meu espanto, nem éramos mais de uma dúzia. A culpa não é de ninguém, a culpa é de todos, é essencialmente dos portugueses que cá residem. Quem é eleito para dinamizar acções que sirvam a população, teve uma colaboração residual. Facultaram-nos sacos e dois elementos do Corpo de Bombeiros Voluntários de Santa Cruz. Não podem acusar a organização do “Limpar Portugal” de falta de divulgação. Há meses que este projecto tem sido difundido nos meios de comunicação social. Tem mobilizado pessoas, de forma incansável, visando o seu sucesso. Reunir Portugal foi o desígnio, com o fito de limparmos o rosto lusitano. Mostrarmos que, juntos, podemos voltar, com brio, a ser um povo estóico e valente. No Caniço, freguesia populosa com algumas dezenas de milhar de habitantes, éramos poucos para tanto lixo. Atacámos uma frente, outras haveria, mas, nem que o nosso esforço fosse sobre-humano, não éramos capazes de responder sozinhos a tanto detrito. Foi possível concentrarmo-nos na praia e na sua envolvente, de características que, sem acção humana relevante, ainda conserva a sua beleza. A acção dos Bombeiros Voluntários de Santa Cruz afigurou-se de uma passividade avassaladora. Se o programa “Limpar Portugal” pressuponha voluntariado, os denominados oficiosamente de Voluntários preferiram a inércia. Quanto aos pescadores locais, aproveitaram a nossa acção para – numa atitude provocatória ou de civismo abjecto –, abandonarem garrafas, sacos, maços de tabaco pelo local. Não houve logística institucional à altura, tão-pouco privada, para o transporte do material, a adesão ficou muito aquém, resta esperar que a Autarquia, tal como se comprometeu, recolha oportunamente os sacos que deixámos organizados no local. Lamentavelmente, embora a acção tenha tido um objectivo essencialmente pedagógico, a exemplo do dia europeu sem carros, quando uma sociedade não tem capacidade de mobilização para aderir a causas como esta, conclui-se que é uma sociedade enferma. Esperemos que o rosto desta praia e da sua envolvente permaneça assim, puro, autêntico, asseado, como tentamos deixar, que seja um lugar que constitua o prolongamento do conforto, comodidade e asseio das nossas casas; que o cauto com o individual se expanda para o que é público, acção que corresponda a uma imperiosa expansão das mentes que a Madeira precisa e Portugal agradece. Aos que participaram nesta acção, seguramente Portugal orgulha-se deles como cidadãos. Pela cidadania, por Portugal.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Almas Mortas


O título parece fúnebre, macabro, funesto, ou uma simples apologia à morte ou ao mito das almas. Mas as aparências iludem. Efectivamente a morte tem uma conotação negativa, normalmente dissuade, repele, provoca aversão. Neste caso o título remete para uma obra de Nikolai Gógol. É o livro mais célebre do escritor russo nascido em território ucraniano. Nele sobressai um herói que, tem tanto de sedutor como portador das mais desvairadas falibilidades humanas. Falibilidades que, no contexto de uma Rússia esclavagista, pareceriam arcaicas no nosso mundo actual, mas, surpreendentemente revelam-se de uma actualidade aterradora. Tchitchikov, o protagonista, é um viajante que se aventura por uma Rússia epidémica, infinita, seduzindo pela etiqueta e prestimosas cordialidades. Segue no encalço do inverosímil. Durante as investidas do herói, são descritas personagens de perfis roçando o absurdo, com uma mestria inimitável, caricaturando a Rússia ou a natureza humana mais primária. Ninguém é poupado à contundente narrativa, à acutilante capacidade imaginativa do autor. A Rússia afigura-se povoada por um antro de gente medonha, fleumática, ou por bandoleiros, charlatães, inscientes e pacóvios. Há uma interactividade do autor com o leitor, incomparavelmente bela, única, uma marca que, aliada ao domínio dos diálogos, embevece qualquer leitor mais exigente. Quanto às almas, essas não são mais que servos que, na Rússia ainda medieval da época, estavam sob o jugo de grandes proprietários, subalternos de um regime feudal esclavagista. O primor das descrições exibe a identidade autêntica desse país encantador onde a grosseria pode contrastar com a hospitalidade mais extremosa e amiga. A Rússia é descrita com arte, com uma sátira poderosa que alicia quem aprecia o género. É notável a mestria deste escritor que, numa narrativa apelativa e hipnótica, consegue transportar o leitor por um mundo misterioso, pelas incursões e golpes ardilosos do herói do livro. Há tanto de ironia como de poesia, a narrativa é pura e crua, onde fica expressa a dualidade de sentimentos pela sua Rússia, tantas vezes ultrajada pela ironia e pelo humor sarcásticos impresso na sua escrita. A segunda parte do livro resulta de uma recolha dos restos do segundo Tomo, grande parte queimado a mando do autor. Se a literatura russa já figurava no pedestal das melhores, Gógol, com o seu “Almas Mortas” reforça a sua excelência e, no meu caso pessoal, impele-me para mais um plano de viagem que tenha na Rússia o seu desenlace. A sensação de uma terra sem fim, sem peias nem barreiras, a severidade desta imensidão criam uma apetência única a quem nasceu envolto na imensidão da água. Se puderem, leiam Almas Mortas, a culpa não é minha, como diz o autor, a culpa de toda a trama é apenas e só de Tchitchikov. Não percam este livro que, na minha opinião, talvez a par de Margarida e o Mestre de Mickail Bulgakov, foi o melhor livro que li da literatura russa. Uma obra-prima imperdível!