segunda-feira, outubro 13, 2008

Bucareste: cidade dos contrastes



Após uma primeira impressão que, seguramente, não deixou dúvidas a quem me leu e alguma vez pensou fazer um périplo pelo país que celebrizou o Conde Drácula, achei razoável e justo corrigir alguma exasperação revelada após deparar-me com tanta indigência. E se é um facto que a pobreza lusa existe, extrema-se essa ideia pelo profícuo sensacionalismo que alimenta manchetes de jornais e excita a opinião pública na hora de jantar. Chega-se a passar a ideia de que regressamos ao tempo do Estado Novo em que os ditames eram ordenados por um caudilho de conotação religiosa e onde a pobreza era extrema. Efectivamente, os mesmos problemas que nos afligem, fustigam tantos povos por esse mundo fora e a maioria, de forma muito mais profunda. Há uma pequena diferença: habituamos o português a não trabalhar e a não querer mover uma palha.
Mas voltando à Roménia, seria uma heresia duvidar da simpatia do romeno, da sua espontaneidade e de um travo latino que acolhe bem e, regra geral, não se coíbe de oferendar um sorriso em circunstâncias que o proporcionem. Seria ingrato exigir a uma indigência pungente, sorrisos e jovialidade quando, nós próprios, detentores do conforto e assaz bem-estar, tantas vezes exteriorizamos fleuma e melancolia.
Bucareste foi dimensionada em megalómanas proporções, sobretudo o inefável parlamento mandado edificar pelo tirano Nicolae Ceausescu. E se franceses arquitectaram a cidade, daí a resposta às suas afinidades com Paris. A maior lacuna é a inexistência de um rio majestoso. As igrejas ortodoxas, graciosas, portadoras de uma arquitectura bizantina, encontram-se encafuadas pelos faustosos edifícios classicistas. A tirania de Deus foi inferior à dos homens, todavia, sem correspondência com a volumetria, são visíveis sinais de manifestação religiosa, patenteada mesmo por muitos jovens (e demais população) que, ao se cruzarem com uma igreja, benzem-se ritualmente três vezes, encerrando a cruz da direita para a esquerda, o oposto do que fazem os católicos.

Por muito que tente distanciar-me, sistematicamente sou levado a Paris, quer pela conotação desta cidade com o berço do gótico, quer pelas inúmeras analogias entre as duas cidades, mais visíveis na toponímia. E justiça seja feita, realizado mais um périplo pela urbe, descobri a sua zona mais nobre onde museus e algumas salas de espectáculo se agrupam em redor de grandes praças. São edifícios grandiosos que contrastam com o cinzentismo informe e glacial da periferia. E os contrastes não ficam por aqui. Há um sucedâneo deles por toda a cidade, e entre o parque automóvel vetusto, irrompem carros de alta cilindrada, grande parte deles guarnecidos de vidros fumados à moda da Itália napolitana.
Os jardins, embora de uma simetria mais irregular, são belos, mas ao contrário do que sucede em Paris, aqui as urgências diferem: não se bebe cultura, não se lê como em Paris e, a relva, ai de quem a pise. A punição é exemplar e aparece anunciada em placares. Nisto assemelhamo-nos, não na punição, mas na relva para mero adorno.
A pobreza da periferia, que tantas vezes se confunde com a do centro, é medonha. Valeu esta constatação para igualmente constatar o quão solidárias as pessoas se tornam nesta condição. Aqui é evidente e comove. Também é por isto que Bucareste, paulatinamente, me vai seduzindo. Até me recordo da hilariante situação de dois indivíduos correrem para apanhar o eléctrico, cada um deles com uma sanita às costas. Pergunto: hilariante porquê? Se vermos bem, quem é o infeliz que não tem sanita em casa? Aqui não há preconceito, as pessoas vivem e não prestam subserviência à imagem e ao julgamento mesquinho.
E no meio de uma capital europeia, não encontrei um único local onde se vendam postais e demais “souvenirs” para turista. Mais uma razão a favor de Bucareste.
Detenho-me nas fotos, a indigência não permite e adverte-me com o olhar. Eu respeito, condescendendo. A miséria não deve ser alvo de júbilo deleite por quem nela prefere ver arte e menosprezar a sua crueza.
Prestes a me despedir, vou vagabundear por aí, seguro, porque a pobreza aqui não assalta nem aborda para extorquir.

1 Comments:

At 7:29 da tarde, Blogger Nelson said...

Caro Duarte,

estou extasiado com o seu blogue, sugerido pela minha grande amiga e escritora Filomena Camacho.

As imagens sao lindas e os textos tambem! (perdoe-me a falta de pontuacao, mas estou a escrever num teclado ingles). Temos em comum o goste de viajar, da boa fotografia e da literatura.

Gostaria de vir a minha exposicao na Casa das Mudas, dia 21? Estou na Madeira a pintar e gostaria de o conhecer.

Um abraco
Nelson Ferreira
966474188
www.nelson-ferreira.com

 

Enviar um comentário

<< Home