quarta-feira, maio 21, 2008

Istambul

E porque estou de saída para algures, aproveito para desculpar os meus leitores o facto de deixar o conto “o francês” em falta. Pelo menos a sua conclusão, caso não vire romance ou não seja mais um inacabado, dos muitos que nessa condição fenecem à espera. Ressuscitarão um dia? O tempo o dirá. Enquanto o mistério do ancião se desdobra no mistério dos contos por acabar, não duvido que o ócio e outros afazeres permitirão ao francês sem nome, manter a essência misteriosa que, prometo, tentarei desbravar no regresso. Até lá, boas leituras e saudações do estrangeiro (o francês), e de quem o rebuscou da memória.
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Esquecido no bloco de notas
Quando procurava o meu caderno de viagem, encontrei um pequeno texto rascunhado, virgem, manuscrito naquele registador que me vai acompanhando nas incursões ao desconhecido, como aquele que me espera e que vos darei conta. Veladamente. Publico-o de seguida. Até breve!


Foto de duarte olim

Istambul

Não sei se é saudade, mas paira um denso sentimento no ar, mistura-se com este odor farto e irriga profusamente um jardim de memórias.
Um som arrastado difunde-se do interior de um café e viaja na lisura das águas deste porto natural dantesco. Ainda não é este o meu porto de abrigo. Ancorado neste remanso, por muitos designado o mais belo, de dourado ataviado. Se é ou não barroco, desconheço, sei apenas que a música é exótica e me situa na distância da alvorada. Por instantes sinto um laivo de inquietação, mas a música ressurge mais densa e ecoa no âmago do meu corpo, quiçá seja alma este interior. Sinto misticismo, equipararia esta sensação à que o fado me desperta, mas esta metafísica é tépida e nalguns acordes, arrasadora. Varre a descrença e impele para as antípodas, onde reconheço nos opostos o pecado e o fanatismo religioso. Resisto e permaneço equilibrado no meu agnosticismo. O som é quente, contrastando com a atmosfera fria.
A música persegue-me com a sua viscosidade que me tolhe de outras distracções, tem uma gravidade própria, sustentada por este amplo refúgio de plenitude, abençoado para a prosperidade humana. Foi berço, mas mantém os mesmos tiques de criança. Não é ingénuo em material, mas é primordial nos actos, rude na genuína forma de exibir a faceta mais humana, em trejeitos que podemos considerar boçais, grotescos, mas que resultam afáveis e amigos. Coexistem miríades condutas, indumentárias e feitios; as aparências desfilam no ritmo que as faz unas, num frenesim análogo ao da cidade.
Civismo não é regra, e de regras carecem seus vassalos, vassalos de dogmas e de credos. Não há gratificação, apenas pregões sôfregos por negócio, onde o sorriso não tem guarida e o retorno a ele é diferente do que me acostumei. Noto que é diferente a idiossincrasia ante o meu sorriso. Também não suspeitam da minha condição estrangeira. Talvez me confunda com eles. Talvez seja daqui, ou Istambul me pertença, me chamou e não me aceite resgate para me devolver à rocha-mãe. Persegue-se a indelével sombra que esta memória me incrustou. Não sabia desta cidade tão semelhante a Lisboa. Semelhanças existem. Muitas! É estranho, não é?

4 Comments:

At 11:13 da tarde, Blogger deep said...

Gosto destes textos-devaneio. Como já disse antes, fazem nascer em mim o desejo - imenso! - de partir.

Boa viagem. :)

 
At 8:45 da tarde, Blogger Carla said...

Que os teus devaneios te permitam ir além de ti mesmo e continuar vencedor na luta que travas contra os obstáculos. Caindo na repetição: é sempre um prazer ler-te :)

 
At 11:52 da manhã, Blogger Berta Helena said...

Li cheia de interesse. Devaneios que despertam em mim outros devaneios.
Voltei a ler e não desapareceu essa vontade imensa de, também eu, pegar no meu caderno de notas e no meio de uma esplanada numa qualquer praça distante, derramar no papel devaneios da minha alma.

Um abraço.

 
At 9:12 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Je reviendrai, je vous assure!
Et , je vais lire de nouveau l`histoire, d` accord....
a bientôt
JRibeiro Marto

 

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