terça-feira, janeiro 20, 2009

Um Americano em Bucareste



Entre o alvoroço da estação ferroviária e a desorientação própria do prelúdio de uma viagem, fui afortunado à terceira tentativa para que alguém me elucidasse sobre qual era a minha carruagem de comboio e assento respectivo a que tinha direito. Isto aconteceu na Gara du Nord, em Bucareste. Antes de vos falar da personagem que se me cruzou no caminho, informo-vos que me desenvencilhei razoavelmente do dilema (com alguma ajuda romena). As informações normalmente eram insuficientes, resolviam somente metade dos meus imbróglios. E sabendo que aquela indicação era meio caminho andado, fui conduzindo pelo corredor do primeiro andar da diligência, que mais tarde soube ser destinada à 1ª classe (por norma, aprecio apenas 2ªs classes, seja onde for). Posto isto, depreendi que o meu número – elevado demais para ter existência neste comboio – não constava. Por entre algumas inquirições, desisti, só encontrando indulgência na expressão resignada de um homem que se demorava no hall da entrada da carruagem, plácido, exibindo uma pose confiante e despreocupada. Munia-se de uma risível mochila em miniatura, vermelha, nada condizente com a sua roupa executiva. A camisinha de manga curta parecia desadequada ao frio outonal pungente. Sem esboçarmos qualquer diálogo apercebemo-nos que estávamos unidos pelo mesmo embaraço. Detive-me, saí, mas à cautela, entrei, não fosse a locomotiva iniciar andamento sem pré-aviso. Acto contínuo, num impulso virei-me novamente para o homem que parecia nas mesmas circunstâncias que eu e indaguei-o, recebendo uma afirmativa resposta em inglês fluente e uma assertiva à nossa desorientação. Sem parcimónia, atalhamos pelos degraus que nos davam acesso à segunda classe. À nossa frente espraiou-se um corredor de deleitosa simetria, sem vivalma, inteiramente à nossa disposição. A descontração pela situação foi subscrita pelo americano, quando este resolveu sentar-se e observar que, até mais apurado esclarecimento, apenas estava sujeito ao incómodo de ter que saltitar de lugar em lugar, à medida que fossem surgindo os “donos” dos lugares que, por ora, nós ocupávamos. Acontece que, já em amena e afável conversa, apenas fomos visitados na carruagem por uma passageira que se sentou num lugar a pouca distância. No entretanto, a relação luso-americana foi-se estreitando e ficou mais próxima quando Reymond revelou ser casado com uma portuguesa natural de Aveiro, filha de emigrantes portugueses, aproveitando ainda para soletrar algumas palavras em português como se servissem de visto para pugnar o seu relato. Trocámos impressões sobre a nossa idiossincrasia em relação à capital romena, e só tardiamente nos apercebemos que a senhora que se havia disposto a poucos metros, nos ouvia atentamente. Quando nos lamentamos pela constatação de que poucos romenos se expressavam em inglês, tivemos um feedback imediato oriundo do jovialidade da senhora romena que retorquiu: “se fosse a vocês não estava tão certo disso”. Esmorecia-se a rir com a nossa animosidade. A seu pedido, convidá-mo-la a juntar-se a nós e iniciou-se uma conversa a três. Até aí sabia que o americano tinha vindo à Roménia em trabalho, que no tempo livre percorria a cidade a pé, de lés-a-lés; que quando se deparou com o rio, foi até à sua margem, pegou numa concha de água, observou, cheirou, analisou-a e volvidos instantes, desfez-se da roupa e mergulhou naquelas águas frias, desnudado, em primordial entrega. A despeito disso, invejou-me por estar a viajar sozinho. Recordava as vantagens dessa liberdade e, não sei se por saudosismo, rumava para Brasov, sem viagem de regresso marcada, não obstante a viagem de avião para os Estados Unidos, aprazada para o dia seguinte, porque, na sua opinião, ir sem nada programado dava um cariz aventureiro que ele apreciava, adiantando que podia regressar numa boleia fortuita, a pé, de autocarro, de comboio ou sabia-se lá de que maneira. Comprazia-se com o inesperado. Apesar de já quase rondar os cinquenta anos, quem o observava apercebia-se de que este homem era um hippie vestido de forma classicista, por imposição do ofício e das responsabilidades que a vida acarretava. Já naquele tom afectuoso, perguntou-me: “sabes porque é que não se encontram mulheres a pedir boleia?”. Ainda cedi um pouco ao esforço de reflectir, mas nada me ocorreu. “Porque os carros anteriores já as levaram”, respondeu-me. Ensinou-me ainda qual era a melhor forma de augurar fortuna em boleia. Apesar de nunca ter sido aficcionado pela ideia, achei piada às estratégias, porque, não só deveria dirigir-me a um posto de serviço para uma abordagem directa, como nunca questionar o condutor “por acaso vai para tal destino?”, ao que, qualquer arguto menos interessado em facultar tal oferta, mesmo se dirigindo ou passando por lá, replicaria com um seco e irreversível “não!”. Deveríamos perguntar: “para onde vai?”, pois a probabilidade de se obter uma resposta compatível com as nossas pretensões, era mais certa.
Retomando à conversa tripartida entre uma romena, um português e o americano, esta foi tão profícua e clarificadora que, desde aí entendi melhor a Roménia, todas as incongruências ou contrastes que o país exibia, sobretudo na capital. A senhora residia fora de Bucareste, mas para ali se deslocava diariamente, salientando que preferia sujeitar-se a uma viagem diária de comboio, que viver no fastio de uma metrópole tão asfixiante como Bucareste. Trabalhava na Universidade e foi capaz de, numa forma sucinta, explicar a Roménia, desde o tempo anterior a Ceausescu, até à actualidade, mesmo elucidando a minha estranheza em relação a tentativas de edificar uma Bucareste com tantos sinais comuns intimamente ligados a Paris.
Lamentavelmente teve de nos deixar e fica a recordação de afáveis momentos de partilha que não tive o prazer de vivenciar mais naquela viagem, daquela forma tão perspicaz e atenta de interpretar um país, a europa e o mundo. Era uma mulher poliglota, apta a falar 5 línguas, entre as quais o estranhíssimo turco. Daí em diante, eu e o americano fomos assistindo à penetração da linha férrea por entre a cordilheira montanhosa da Transilvânia que nos foi embevecendo e surpreendendo. Ficará para sempre registada a observação da mais bela floresta em chamas outonais que alguma vez contemplei. Esgares de espanto e cordata partilha com Reymond foram os aperitivos até chegarmos a Brasov, enquanto no ar pairava o temor de um Drácula que afinal não assustava.

2 Comments:

At 5:04 da tarde, Blogger tb said...

Ah meu amigo!. tive a impressão de ser também mais uma passageira desse comboio tal a mestria e vivacidade que colocaste nas tuas palavraas para partilhares connosco emoções que me agradaram muito.
Como devia ter sido uma viagem de sonho...
beijinhos

 
At 3:41 da manhã, Blogger CELIAJOAO said...

Mais uma coincidência, eu também estive em Bucareste, e conheci bem a Gare du Nord com todas as suas personagens incomparáveis.
Gosto como escreves,embora sejam textos demasiado longos para a minha onda!!!!
Beijinhos
Célia João

 

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