quarta-feira, outubro 29, 2008

A Incerteza do Reencontro



Eu sabia que iria voltar a Praga, mas não esperava que o fizesse assim inopinadamente. Nisto, em pouco menos de nada, eis-me imerso na magia. Agora tudo parece mais resplandecente, sem a nebulosa mística que me asilou, mesmo que faça noite e me gele as mãos. Quando cá estive, havia uma certa bruma primitiva que já não paira, tal como a inocência em viagens que me impeliu para aqui fazer a minha estreia, seduzido pelo assombro que esta urbe despertava no meu imaginário, sem que eu o compreendesse. Ainda não ouvi a melodia Vltava de Smetana. Creio não haver composição que melhor compagine com uma cidade. Mas mesmo que essa sonoridade iniciasse o seu prelúdio, falta a Praga alguma identidade, ou devo ter entrado de rompante nas suas entranhas, sem hipóteses de contemplar a cidade da lonjura, degustá-la paulatinamente enquanto nela penetrava e assistia ao desfile crescente de arte e cor. A modernidade de metropolitanos capacitados para nos ejacular no âmago da cidade deixa-nos desconcertados para acompanhar a toada da emoção: esta amálgama miscigenada de arte que exalta o belo e o harmonioso. Porém, a hora tardia urgia uma chegada assim, mesmo que a escuridão daqui não me cause qualquer temor.
O rio está lá como dantes, enfeitado pelas luzes que descem ao seu leito. Ainda me causa estranheza um rio correr de Sul para Norte, na minha concepção fazem-no em direção ao Sul porque é na região setentrional que moram as montanhas e cordilheiras agrestes. Há que me habituar à prosápia da geografia.
Ainda não avistei Franz Kafka, esse marginal que derivava por aí, percorria a cidade velha, serpenteava a multidão na ponte e fugia por uma ruela menos concorrida, subindo uma escadaria custodiada por trepadeiras coloridas. Agora não o pressinto. Trago comigo uma publicação que reproduz, traduzida, uma carta que o mesmo escreveu ao pai. Li apenas a primeira página, mas devia ter sido presságio para, num ímpeto, anoitecer em Praga. Gosto destes imprevistos, daí a deficiente programação. Não esperava esta ventura. Recordo ainda que a aurora da primeira vez foi musical, era audível uma marcha militar em local incógnito. Essa melodia arremessou-me da cama e abri uma nesga da abertura da clarabóia, à escuta. Deleitei-me com o som, com a atmosfera que criou e que me fez sentir intrincado na real atmosfera de um país do bloco de leste, ou no imaginário que deles criei. E intrometi-me no país mais inconformado com o domínio soviético, daí que a marcha militar me tenha lembrado o movimento de resistência na Primavera de 1968. Agora, volvidos alguns anos, desconheço que surpresas me poderão revelar a alvorada de amanhã, sei que diante de mim terei umas barracas de vendedoras de fruta e produtos hortícolas, bem como artigos para deleite de turista. É uma espécie de mercado ao ar livre que na altura me foi pródigo numas maçãs deliciosíssimas. Talvez não tão deliciosas como as que devorei massivamente na Polónia. Pudera, um quilo delas custava o mesmo que me cobravam para urinar. São as vicissitudes das necessidades. Mas descendo a Praga, a cidade encontra-se engalanada e noto que há um certo estado ufano que lhe retira a genuinidade que conheci. A modernidade inculca-lhe o cosmopolitismo de outras grandes, e sem querer ser escrupuloso, o turismo aniquila-lhe o espírito. Penso que Kafka se oculta noutra Praga mais escusa, ou expiou a alma atormentada e resignou-se à obra que todos consagram e homenageiam. Que mais um mortal pode aspirar no mundo? Não distingo corvos nos aglomerados de árvores dos jardins, deduzo que dormitam, preparando um alvor frenético, ou semeando apenas augúrios tão medonhos como o negro pestilento das suas penas. Salpicam o dia de breu e grasnam histéricos, quiçá Kafka se tenha metamorfoseado numa destas aves, agora dormitando na geada nocturna que pousa na calçada. Ou num insecto, como na sua metamorfose que tributa a solidão e a ruína humana. E antes que a brisa siberiana me agrave a rebelião da minha garganta, recolho-me num lugar esquivo e confortável, vazio, ou não se estivesse em época de calmaria turística. Até consigo amar o frio, para que rios sejam apenas aqueles que carregam águas e não multidões. Amo ainda este anonimato. Até amanhã.

1 Comments:

At 12:44 da tarde, Blogger clarinda said...

Olá Duarte,

Tenho vindo ler os teus relatos de viagens. Vejo que os estás a escrever com disciplina e empenho, há alguns que ainda não li, mas lerei. Fui surpreendida com este de Praga. Também me deixei embebedar por aquela magia, sei lá se algum dia voltarei, mas pergunto-me se precisarei de voltar ou se já tenho comigo a Praga de que necessito.

As metáforas são muito expressivas e Kafka adormece sossegado depois das hordas de turistas partirem.

Beijinhos

 

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