terça-feira, julho 19, 2005

Desamparo Nocturno

Na noite velada e tranquila, por vezes acordamos, e no escuro, contemplamos o vazio desalmado. A névoa penetrante da noite cobre as formas, os detalhes do quarto, os recantos do nosso imaginário que ontem se apresentavam tão nítidos. Sentimos um apelo à finitude da nossa vida. Esvaímos em suor. É como se um pesadelo sonhado envolvesse este cenário pictórico e funesto. Da calmaria da noite sobeja a inquietude interior. Sentimos falta de um regaço, de um aconchego quente e terno. Pegamos no telemóvel na esperança que tenha sobrado alguma mensagem de ontem. Mas nada. Damos por nós inseguros, desorientados por esta angústia entorpecida assente neste desamparo medonho. Imprecamos um abrigo. Não o encontramos. Imagens mentais irrompem a nossa mente como num filme rebobinado em modo rápido. Rebolamos na cama, mudamos a almofada, hoje menos confortável; ajeitamo-nos, mas a sensação torpe continua a consumir-nos. O sono emigrou. Soçobramos na lassidão deste momento. Somos órfãos da noite. Estamos à mercê dos seus mistérios e caprichos. Da sua realidade atroz inalienável. Esmorecemos. Talvez sejamos protagonistas dos sonhos de alguém. Ou serão pesadelos? Talvez nem o mundo onírico nos utilize como figurantes secundários. Estamos sós. Sentimos que a lucidez deste acordar nos confronta com a solidão. Ela invade-nos sem convocatória. Sem cortesia. Sem zelo. Não temos quem nos socorra. Não temos quem acordar. Pego num livro, e quando leio o título “o vendedor de passados”, questiono-me se não haverá quem procure um ofício que nos venda o futuro. Aquele que sonhamos noutras noites ébrias. Não nesta! Oiço passos na vizinhança. Gente noctívaga de costumes inauditos. Gente sem estes desvarios certamente. Força-se o sono, mas ele não arreda. Deixa-nos imersos nesta vigília inquietante. Aqui na noite, no escuro, na aterradora solidão somos desafiados pela nossa existência. É madrugada. Habitualmente ouviria o primeiro cantar dos galos. Um carro a romper este silêncio. Mas nada. Paira no ar a mórbida solidão. Não há um porto, um farol que na noite, nos oriente… nem um baixio que nos faça acordar num naufrágio.

6 Comments:

At 3:10 da tarde, Blogger clarinda said...

Olá Duarte,

Abordagem ousada da inquietação e do desassossego. é bom saber que na blogosfera também se fala de medos e vazios e de noites que parecem nunca acabar e de dúvidas e de inseguranças. Obrigada por me trazeres este teu texto.

Um beijinho

 
At 3:51 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Duarte,

É quase infame dizer que um texto que espelha angústia é belo... mas o teu grito na escuridão é uma rasgo de sensibilidade que poucas pessoas conseguem libertar desta forma.
A propósito lembrei-me da letra "Sozinho" de Caetano Veloso

Às vezes, no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordado, juntando
o antes, o agora e o depois
por que você me deixa tão solto?
por que você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho!

Não sou nem quero ser o seu dono
É que um carinho às vezes cai bem
Eu tenho meus segredos e planos secretos
só abro pra você mais ninguém
por que você me esquece e some?
e se eu me interessar por alguém?
e se ela, de repente, me ganha?

Quando a gente gosta
é claro que a gente cuida
fala que me ama
só que é da boca pra fora
ou você me engana
ou não está madura
onde está você agora?

Quando a gente gosta
é claro que a gente cuida
fala que me ama
só que é da boca pra fora
ou você me engana
ou não está madura
onde está você agora?

Um beijo,
Rute

 
At 3:18 da manhã, Blogger Ana said...

Um texto que reflecte uma realidade mais frequente do que muitas vezes pensamos.
Mas, acredita, há sempre um porto de abrigo, um farol que nos alumie. E, às vezes, está tão perto e não vemos.
Um beijo nocturno.

 
At 12:02 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Duarte,

Achei que ias gostar deste poema... :)

Navegações II

Nos movimentos do mar
se aconchega o meu barco
se molda, rola, balança
ondas que o tomam de proa.
Mar e barco em comunhão
rumo ao destino sem pressa
até que o mar se aquieta
e as ondas lambem a areia
em branco lençol de espuma.
Enrola-se o barco em concha
e o mar em porto de abrigo.

(publicado por Lique a 28 de Janeiro de 2005 em mulher50a60.weblog.com.pt)

Beijo,
Rute

 
At 11:40 da tarde, Blogger DT said...

Amigo Duarte,
Só o título já me cativou.
Conseguiste descrever brilhantemente uma das minhas muitas noites. Porque a noite é tudo isso! E são nessas noites que escrevo...
Grande abraço

 
At 4:12 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Olá amigo virtual

Creio que ninguem melhor que tu poderia fazer uma descrição tão poética do desassossego das minhas noites e insónia!...

o meu carinho

Sericaia

 

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