quinta-feira, maio 12, 2005

A Luz na Escuridão

O manto da noite envolvia a cidade, e daquele flanco da encosta, tremeluziam pequenas luzes oriundas das janelas. A calmaria era entrecortada por focos luminosos que ziguezagueavam de forma ininteligível por entre ruas e avenidas, acompanhados por rosnares de motores. Era o recolher a casa dos últimos carros. Ali fora, sentia-se a brisa fresca que reprimia a permanência no escuro da noite, onde a bruma competia com as luzes que iluminavam as ruas, convidando ao recolhimento. Algures, entre aquele emaranhado de luzes e prédios, vivia o António, um miúdo de rebeldia contida, estereotipada na sua tenra idade. A sua mãe ultimava os preparativos do jantar, juntando temperos à sopa de espargos que, seria acompanhada por broa de milho com manteiga e fruta como sobremesa. O rapaz encontrava-se no quarto, no pensamento dos pais, estudando. Todavia, na clandestinidade, jogava, absorvido, um jogo no computador. O pai estava refastelado no sofá, acompanhando as notícias na televisão, enquanto a irmã, Isabel, com zelo feminino, arrumava as coisas para o dia seguinte, planeando alguns deveres para depois do jantar, enquanto ouvia uma música melíflua, repleta do romantismo que inebria as jovens adolescentes.
A mãe saiu da cozinha e percorreu as divisões do pequeno apartamento, para reunir todos para comer. O António, num colapso repentino, debruçou-se sobre os cadernos, estrategicamente abertos à sua beira, e quando sentiu a maçaneta da porta a mover-se, simulou exasperação pelo jantar, esboçando uma expressão de enfado, imputável ao pretenso estudo que supostamente o fatigava. A Isabel, rapariga obediente e metódica, anuiu ao chamamento e seguiu ordeiramente a mãe até à cozinha. O pai resmungou ao chamamento da mulher, pois estava a acompanhar um debate televisivo. A mulher avisou-o que queria ver a novela das nove. Ele suspirou, e taciturno, não arredou do sofá. Após muita zanga o António veio jantar, sem contudo passar o nível que ansiava do jogo. O pai juntou-se por fim à mesa, embora visivelmente contrariado. Ali, cada um ausente do outro, iniciaram a refeição, saboreando a sopa deliciosamente preparada, omitindo contudo, qualquer comentário abonatório a quem a confeccionou. A Isabel interrompeu:
– Mãe! Amanhã posso ir ao cinema após as aulas?
– Podes, mas não chegues tarde!
O pai continuava atento à televisão que, estava com o volume mais alto, indiferente aos filhos. Terminaram o jantar, o António correu para o quarto, pretensamente para estudar… O pai teve um arrufo com a mãe, e após as tarefas, ela teve de ir ver a telenovela para o quarto, pois entretanto, na sala, iniciara-se uma transmissão de futebol.
A noite estava calma, nisto, num laivo súbito, tudo se apagou… a luz deu lugar às trevas e do silêncio irrompeu a voz aflita do António: “O que aconteceu?”. Ouviu-se a mãe lá ao fundo: “Tenham calma, não saiam de onde estão que vou buscar velas. Houve um corte de energia!” O António estava atónito. Tinha medo do escuro. O pai mastigou um palavrão abafado, espelhando a sua impotência perante tão inusitada ocorrência. Volvidos alguns minutos, ouviram-se vozes na varanda do andar de baixo. A sala iluminou-se de velas, e o corte eléctrico não se compadeceu com o impropério contido do pai do António. Em desespero de causa, tentou o rádio, mas em vão. Só depois reflectiu que o mesmo era alimentado por electricidade.
Nisto, estavam todos na sala e iniciaram um tímido diálogo. O António estava inconsolável, mas a pedido da irmã, aceitou deslocar-se para fora, atraído pela quietude da noite. Na varanda, escutaram muitas vozes que acorriam à espreita de identificar a causa do sucedido. A paisagem nocturna encontrava-se alterada, onde escasseavam luzes foscas de velas. Na sala todos se resignaram e aguardavam que regressasse a luz. Insolitamente, reuniram-se ali naturalmente, conversando do dia, das preocupações que os afligiam, enquanto os filhos falavam da escola, desabafavam com os pais e estes, pouco rotinados com esta proximidade, deixavam o diálogo fluir e enleavam-se nesta cumplicidade, procurando aconselhar, apoiar, aproveitando o tempo que naquela noite, parecia soçobrar para a família. O pai mitigou a sua irritação, à medida que as velas lhe retemperavam as têmporas, até ali irascíveis. As silhuetas no escuro e as sombras que se desenhavam da luz das velas, proporcionavam um recolhimento tão aconchegante que se esbateram as barreiras que o quotidiano havia erigido. Eclipsou-se a luz eléctrica, mas acendeu-se a luz naquele núcleo familiar.
Até ao deitar, aquele modesto espaço prodigalizou intimismo que se configurou numa noite serena, tranquila e um amanhecer alegre e feliz.

3 Comments:

At 2:25 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Excelente, Duarte!
Admiro a tua capacidade poética de descrever o banal.

Beijinhos,
Rute G.

 
At 8:44 da tarde, Anonymous Anónimo said...

E não é no lugar-comum que está a beleza?
Meu caro amigo, felicito-te pela qualidade da ESCRITA.
Abraço

 
At 3:13 da manhã, Blogger DT said...

Amigo Duarte,
Começam-me a faltar as palavras para comentar os teus devaneios!
A tua escrita traz-me imagens e recordações longínquas!
E faço minhas as palavras da Rute, admiro a tua capacidade poética de descrever o banal.
Abraço

 

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