terça-feira, abril 12, 2011

Afortunada

Quando culturalmente a nossa génese nos compagina com o fado, com a poesia que a lonjura do horizonte faz esquadrinhar na alma, acenando-nos um porvir mais afortunado que toma a feição nostálgica e faz do sentimento saudade a nossa identidade, não é fácil aceitar a mudança ou agir de acordo com outros cânones mais ledos. Incorporando este perfil, não admira nada que, por colisão entre antípodas, no encontro de massas de humor distintas, a chegada a Barcelona tenha sido molhada, debaixo de uma copiosa chuva. Só com o decurso dos dias me apercebi do porquê desta recepção. Uma cidade tão buliçosa, dinâmica, trajando de júbilo, não podia interagir bem com o fado, com uma poesia de travo melancólico. Admiti que a cidade da arte, do design, tenha esboçado estas feições para moderar o meu entusiasmo, para que, imersa nesta aura pardacenta, pudesse camuflar a sua verdadeira essência, a prosperidade que o povo catalão goza e irradia sem peias. Mas se Barcelona chorou na minha estada, esqueceu-se a metrópole que, no molhado, as cores polarizam e irradiam mais beleza e cor. Estas condições dissuadem ainda as pessoas de sair, reduzindo o fluxo de massas que é comum aqui, desde que, após os jogos olímpicos de 1992, o mundo descobriu esta urbe à beira do mediterrâneo plantada. Todavia, a qualidade de vida, mesmo sob condições desfavoráveis, não quebrou o enlevo e não impediu o formigar de pessoas na rua, uma apetência invulgar pela vida social, aquela que mais contribui para o desenvolvimento do indivíduo e lhe assegura maior felicidade, tese amplamente defendida por filósofos. Nós, por cá, não o percebemos, preferimos a companhia da televisão. Percebi que Barcelona quis que não fosse exacerbado o meu enleio com esta qualidade de tudo, mas também as entidades assim, sábias, se enganam, e o copioso aguaceiro não escondeu a simpatia catalã, a hospitalidade, o bem receber, a bonomia das suas gentes, a arte… a arte que, sob um guarda-chuva e pedindo um olhar mais atento para baixo, para evitar poças e charcos, quase fez esquecer a observação que os detalhes pedem. Aos poucos fui interiorizando a atmosfera deste lugar, o privilégio dos seus cidadãos, ou simplesmente uma certa e indisfarçável soberba de quem nasceu nesta região que clama certo tipo de autonomia, que mantém vivo um falajar distinto, que interioriza a vida de uma forma mais impenetrável, contida, mas sempre receptiva ao acolhimento fraterno. Reclama ser capital, mas não sendo do país, é-o da Catalunha.
A cidade tem uma marca profunda, indelevelmente ligada à arte e ao seu mais destacado artista – Gaudi!, mas se a urbe não quis que ficasse estarrecido com o seu encanto, na despedida prodigalizou um dia soalheiro que, em jeito de remissão, me convidava para um regresso. Despedi-me e, à medida que Barcelona se desvanecia no horizonte, as suas memórias foram-se exacerbando no meu interior. A arte que o seu maior génio imprimiu como marca, não causa prejuízo algum à magia que aquela labiríntica cidade velha já antes encerrava, e graças à chuva que Barcelona me oferendou, a aversão ao molhado das gentes deixou a descoberto reminiscências da sua rica história e do seu próspero passado. A esta distância reajo com nostalgia às suas memórias, guardo o convite para um regresso, anunciando-o para qualquer dia, quando a sofreguidão por arte me fizer esse chamamento. Até lá, ainda pedalo de bicicleta praia afora, estarrecido nesta urbe de genialidade e, irrefutavelmente, de Gaudi.