sexta-feira, agosto 05, 2005

Crepúsculo Com Lágrimas

A lua iluminava o êxodo crepuscular dos campos, e por esses poios ermos e sibilinos, sussurrava um silvo de paz, entrecortado com bulício pelo canto dos grilos, de fervilhante melodia campestre. A noite afagava os corpos derreados, e as crianças em repouso no quarto, olhavam os raros brinquedos com dó. A candura destes objectos, artesanalmente construídos, contrastava com a crispação das suas mãos visivelmente ásperas e adultas. Os músculos condoídos ainda latejavam de cansaço.
As trevas eram mitigadas pela luz fosca do candeeiro de cabeceira, e o olhar pensativo do miúdo repousava no tecto indigente do quarto. Os seus sonhos pueris eram exorcizados por fantasmas rurais. Focalizava o olhar na ausência do dia severo perecido. Aquele tecto escuro adocicava aqueles olhos cândidos e lassos, enquanto o cheiro fétido que o campo agreste havia incrustado na pele húmida do suor, exalava um odor característico que, pela convivência, se tinha tornado usual.
Ciciou com o irmão, enquanto intercaladamente, se ouvia uma voz agressiva de alguém distante, impondo, exigindo, vociferando. Ordenava marcialmente. Pressentiu-se uma presença feminina. Uma voz silenciada sentia e acatava a tirania do trabalho, personificada naquela voz gutural, lancinante de boçalidade. O ribombar de uma porta batendo, troou até provocar arrepios nas vértebras da noite.
No silêncio agitado, os miúdos apagaram a luz em busca de um sono sereno da meninice perdida. Enroscaram-se nos lençóis, e em trejeitos corporais, foram buscando um conforto que lhes amaciasse a alma. A penumbra convidativa da noite apelava ao descanso. As mãos dobravam-se lateralmente, aconchegando a almofada ao recostar da cabeça, e o olhar perdia-se no infinito da escuridão. A manhã ficava à distância de um encerrar das pálpebras. O alvor seguinte antevia-se frenético, no seguimento dos anteriores, num rodopio que guiaria as pessoas para os campos. Lá fora ouviu-se os sinos a dobrarem uma hora incerta. Era tarde. No limiar do sono, as crianças sentiram um beijo materno que lhes velava a noite, com zelo e protecção. Um vulto feminino afastava-se untuosamente, fechando a porta com delicadeza. No coração das crianças, o sono foi apaziguado por um descomprimir do peito.

13 Comments:

At 5:26 da tarde, Anonymous Anónimo said...

INtimista, envolvente, uma enciclopedia do sentir, é o que me vem logo à mente dizer sobre este seu texto. O talento de escritor, você tem!
(Porque srá que os portugueses se perdem tanto em 'margaridices' pseudo-literárias, quando existem por aí, alguns 'Duartes' para ganhar?)
Valeria Mendez

 
At 12:23 da manhã, Blogger Ana said...

Obrigada, Duarte, pelas palavras que deixaste na encosta. Faziam-me falta.
Um beijo.

 
At 11:15 da tarde, Blogger DT said...

Amigo Duarte,
Passo apenas para deixar um abraço.
Prometo voltar para te ler com a atenção que mereces.
Abraço leonino

 
At 11:22 da tarde, Anonymous Anónimo said...

À distância de inteiro Atlântico, leio o teu texto e linhas adiante subo os poios da tua Madeira, ilha que é minha também, descoberta na despedida. À distância de um inteiro Atlântico, ouço ainda e ternamente, como terno é tudo o que tocado pela nostalgia, as vozes guturais a roçarem a boçalidade. São as vozes telúricas da ilha de rochosa, são as vozes iniciais. À distância de um inteiro Atlântico, encontro textualmente fotografada a minha saudade. Da tua Ilha. Da Ilha que aprendi a amar. Obrigada, Duarte.

 
At 11:31 da tarde, Blogger clarinda said...

Olá Duarte,

este texto pode ser o princípio de um conto,embora em si mesmo já seja um conto.

Um beijinho

O teu texto fez-me lembrar o Trindade Coelho e o seu Abyssus Abyssum

 
At 1:02 da manhã, Blogger Madeira Inside said...

Olá!
Que bom vir aqui!! :) Adorei!!
"Crepúsculo com lágrimas".... muito bom!!
Um beijinho para ti! :)

 
At 9:30 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Será que estou em presença da ideia de um livro?
É que esta escrita merece-o.
Um grande abraço, caro amigo.

 
At 6:25 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Duarte,

O texto está muito bom. Concordo com o que já foi dito antes. Tens talento de escritor. :)

Beijinhos,
Rute

 
At 1:08 da tarde, Blogger Caracolinha said...

Olá Duarte, fiquei muito feliz por te ver dentro da minha casquinha e mais feliz fiquei por ter tido oportunidade de te descobrir e vir beber cada uma das lindas palavras que nos deixas ...

Que bem que escreves, que emoções transparecem nos teus textos ...

Espero ver-te "por lá" mais vezes, tu vais-me ver a mim por aqui, de certeza ...

Uma beijoca encaracolada, como eu... ~:o)

 
At 6:10 da tarde, Blogger DT said...

Amigo Duarte,
A tua capacidade descritiva é incrível! Os teus textos avivam cores e aromas.
É bom voltar a ler-te.
Abraço

 
At 9:33 da tarde, Blogger tb said...

Lendo-te sentimos, vivemos, ouvimos, cheiramos, sonhamos, enfim....somos projectados contigo para dentro da tua escrita e do que descreves.
Beijinhos

 
At 9:33 da tarde, Blogger tb said...

Lendo-te sentimos, vivemos, ouvimos, cheiramos, sonhamos, enfim....somos projectados contigo para dentro da tua escrita e do que descreves.
Beijinhos

 
At 9:36 da tarde, Blogger tb said...

oh, n sei o que aconteceu, que isto repetiu. Podes por favor apagar um? Obrigada!

 

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