quarta-feira, agosto 03, 2005

Dependências Mundanas

São avulsas as publicações que actualmente abundam por estantes, prateleiras de supermercados, grandes superfícies e lugares que não lembram ao diabo, que versam sobre auto-ajuda, vendem a felicidade, indicam o caminho do paraíso, da vida harmoniosa, da beleza que o tempo teima em ir corroendo, num tic-tac pernicioso que a todos inquieta. Vendem uma panóplia de informação, apelativa, nalguns casos de tão objectiva eficácia que parece que nos foi escrita por encomenda. Muitos, por força de não terem hábitos de leitura, ignoram, mas os mais atentos, variavelmente influenciados por chamarizes cortejados, compram-nas.
Não sou crítico deste género de leitura. Nem é meu desígnio intentar contra a moralidade do seu conteúdo. Já procurei essas orientações, já me regi por algumas dessas ideias e considero ter obtido algum proveito. Todavia, por muitas e boas dicas que nos transmitam, passado um certo tempo, voltamos ao insidioso quotidiano que privilegia o supérfluo em detrimento do essencial. Perguntarão os leitores mais atentos (sê-lo-ão os que me leram até aqui – bem-aventurados os que continuarem), o que é obsoleto na vida? Se eu fosse um profeta brasileiro de mil e um ofícios, pensaria que o ofício de escrever é um capricho entre os outros mil ofícios de bem viver. Mas como não sou nenhum predestinado, não sei o que é fútil ou obsoleto. Indubitavelmente o hipotético profeta (ataviado de acessórios divinos) não teria pejo em indicar de forma cativante e melíflua, uma linha de vida que ao ouvido, soaria triunfalista com um efeito paliativo mágico.
Mas não querendo ausentar-me da temática que me aprouve escrever, reflecti sobre valores que a vida me foi ensinando, que eu fui guardando após triagens muito criteriosas, com ajuste aqui, aplaina ali, erro acolá, cabeçada além… e concluo que a informação que fui reunindo me parece inepta para enfrentar a salgalhada de problemas e adversidades que o ritmo do mundo impingiu. Todas as teorias, concepções existenciais, orientações divinas, surgem como intrincados modelos não aplicáveis à conjectura actual da sociedade. O efeito de dogmas, ensinamentos e informações variadas de índole moral, promovem um certo bem-estar efémero, mas são impotentes para enfrentar a máquina avassaladora que nos catapulta para o desprezível individualismo. Vivemos imersos em dependências, e são elas que nos atingem como projécteis de uma chuvada diluviana. Dificilmente sobrevivemos à teia que o consumismo nos enreda. Viver à margem deste fatalismo, é reservado aos heróis. Admiro cada vez mais aqueles que vivem num certo despojamento material. Admiro aqueles que amam harmoniosamente, sem exigir nada dos outros. Admiro aqueles que são superiores às mesquinhezes do dia-a-dia, da competitividade feroz e bárbara que priva de sermos humanos na sua verdadeira essência. Admiro os que buscam na natureza, um refúgio que lhes preenche a alma, e que, nós, ilusoriamente, colmatamos com um apelo ao consumo, ao conhecimento interesseiro, à servil condição egoísta que nos domina. Chego ao cúmulo de admirar os falhados, aqueles que, certamente por falta de oportunidades, conseguem viver com mais intensidade, num elo que os liga ao mundo e à vida que nos deixa atónitos; vivendo na penúria, muitas vezes dão-nos lições de vida. Admiro aqueles que sem nada, enfrentam a vida de forma serena, superiores a tudo, sem aquele pânico desvairado que os nossos rostos transmitem, como se vivêssemos em agonia. Admiro aqueles disciplinados no manjar, comendo para sobreviver, e não vivendo para comer.
Sou levado a crer, fruto da minha precária sapiência, que o que faz mais sentido nesta vida são todos os fluxos de afecto que se estabelecem entre nós e os outros. Podem ser manifestados por um sorriso, por um gesto, por um olhar, por uma atitude, por um afago, por uma contemplação poética e assombrosa do belo. Contudo, se tudo gira à volta do amor, o frenesim que a nossa mente enfrenta diariamente, é tudo menos harmoniosa; é tudo menos amor. Sem pretender ser entediante sobre este famigerado tema, considero que o amor deve ser uma dádiva aos outros de forma totalmente desprendida. Sem sentimentos subjugados de posse. Sem pressupor nada em troca. Efectivamente, a forma como se arquitectou esta teia mundana, promove os amores fugazes, amores desavindos, amores desconfiados, todos eles, amores desamorados.
E se sabemos o que é certo e não o fazemos, porque insistimos nesta cobardia? Perguntarão os mais argutos: mas o que é certo? Leiam nas palavras que durante os dias se escrevem no horizonte com o vento, o mar, a chuva, o sol, o luar e o sorriso afectuoso de alguém que se cruza connosco no caminho.

4 Comments:

At 12:36 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Duarte,

Gostei muito do teu texto. É daqueles temas que dava para falar durante horas. Nem sempre é fácil resistir aos apelos do "mundano". Somos diariamente impelidos a seguir esse caminho. Nem sempre paramos para pensar que estamos enredados numa teia de interesses... que não têm nenhum interesse para nós enquanto indivíduos. É engraçado verificar que até mesmo as coisas ditas "naturais" e de interesse para o desenvolvimento pessoal estão a seguir esta onda enorme do consumismo. Basta ver a quantidade de produtos colocados à nossa disposição, bem como a quantidade de livros que se escrevem sobre estes assuntos. Não quero dizer que não seja bom existir um bom leque de oferta (que nos obriga a estar atentos e escolher com critério), mas tão só que até mesmo nestas áreas somos confrontados com o "marketing", com o apelo ao consumo em busca de soluções para todos os males. No entanto, concordo contigo, não há nada melhor que recorrermos a nós mesmos e ao contacto com a natureza para encontrarmos as respostas que procuramos.

Um beijo,
Rute

 
At 5:00 da tarde, Blogger clarinda said...

Então Duarte,


eu sou bem-aventurada.


Miguel de Molinos tem uma frase, que coloquei há dias em Aguaviva, que pode ser um começo e uma panaceia para esta 'salgalhada'.


Não acredito no amor desinteressado. Para se chegar a ele é preciso um desprendimento tal que temos dificuldade em chamar a isso amor, chamaremao iluminação, transfiguração, imortalidade...
Um beijinho

 
At 11:40 da tarde, Blogger BlueShell said...

Naõ te conhecia. Gostei de te ler.
BS

 
At 9:54 da tarde, Blogger tb said...

Eu então acho que só é amor o que é verdadeiramente desinteressado. Tudo o resto podem-lhe chamar o que quiserem, mas...é outra coisa qualquer.
Interessante este tema que bem gostaria de o desenvolver contigo.
Mas sempre te digo que o primeiro passo para corrigir o nosso caminho, é vê-lo!
Beijinhos

 

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