terça-feira, setembro 06, 2005

Banco de Jardim


 Posted by Picasa

O dia cursava ociosamente, e o frenesim da semana finda, dava lugar a um retemperador sossego domingueiro. A tarde estava pachorrenta e as implorações do corpo pediam-me um repouso. Fui encaminhado para um parque, sobranceiro ao castelo. Procurei um banco de jardim onde me pudesse refastelar do cirandar por aí, descobrindo, contemplando, conhecendo, numa correria pouco condizente com a necessária calma para observar o corpo de um lugar, compaginado com a sua alma. Encontrei um lugar vago e esquecido na extremidade de um banco, onde repousava um ancião de magreza proeminente. Um recanto que a velhice não quis ocupar na totalidade por pudor, no senso zeloso de não interferir no galopante passar dos dias, onde os lugares mais aprazíveis parecem ser interditos a quem a vida acena um fim. Aproximei-me, e com mesura, sentei-me na distância de não perturbar aquele homem. O dia estava cinzento, com uma tepidez que nos inculca de preguiça, enquanto observamos o quotidiano vadio, neste fluxo deambulatório de gentes que derivam e empunham as suas objectivas para fixarem este aqui. Este presente que está em permanente mutação. Mas a teimosia das horas vence as objectivas das máquinas e o dia voa. Ao meu lado, o velho olha-me de soslaio, com uma timidez contida, enquanto, adiante de nós, uma película vai sendo projectada em “primeira matiné” com o cenário das casas em fundo, garridas e estáticas. Circulam pela rua olhares sequiosos de novidades, gerações incertas que vagueiam na fluidez do lazer, pessoas cujas origens não consigo desvendar. Disfarço de forma a não tornar perceptível a minha atenção no velho. Chamo-lhe inadvertidamente à atenção enquanto saco do meu bloco de notas e começo a manuscrever. Parece intrigado. Procuro mostrar total abstracção à sua presença, de forma a não ser invasivo. Suponho que se questiona da seguinte forma: “que leva este jovem a escrever? Que o move para um banco de jardim, sozinho, nesta tarde ociosa?” Apoia os cotovelos nos joelhos e acabrunha a cabeça entre as mãos. O homem, pensativo, entrega-se ao vazio, numa reflexão pincelada de lugubridade. O tempo parece estanque, e o fastio apodera-se dele, traduzido no seu semblante resignado. O seu olhar ausente focaliza o vasto horizonte. Parece vislumbrar uma luz que teima em apagar-se. A luz da esperança que perniciosamente se vai consumindo, que reconforta o passado misterioso daquele homem, naquele país severamente fustigado por convulsões, guerras, invasões e sofrimento. Por entre as frestas que as sombras deixam passar, observa no seu caminho vago, umas réstias de luz que o guiam no intrincado do destino. A inquietação atordoa-o e noto-o ausente de mim, do meu rascunhar desusado.
Enfezado, de magreza ossuda, olha o vácuo da distância e nos nossos encontros silenciados, compreendo a sua fuga… o banco de jardim! No saudosismo dos dias que se esvaíram impiedosamente, parece procurar um futuro que não consegue descortinar. Olha à volta o tempo que não recua. Quiçá, um tempo que ele não quer lembrar mais. Pontualmente revolve as suas órbitas e parece que procura alguém, mas ninguém aparece. Vejo-o subjugado ao estigma do abandono. Afeiçoo-me com a sua tristeza. Queria sair com uma despedida. Com um aceno ou um sorriso solidário. Todavia, não está preparado para este adeus. Não sonha que centralizei nele a atenção. Projecta o olhar para o chão, assim pensativo, absorto nos seus devaneios existenciais. Faço um compasso de espera, na ânsia de que se erga e a permeio desse instante, continuo redigindo as últimas palavras, permanecendo neste bando de jardim. Ao seu lado. Procuro o seu olhar lúgubre, mas em vão. Queria sair oferecendo o meu sorriso. É pouco, mas queria dar-lho. Levanto-me e contorno-o respeitosamente, afastando-me grato por este momento. Levo-o no meu bloco de notas. Sigo em direcção ao rio.

Foto: Duarte Olim

8 Comments:

At 8:46 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Melhor:) Mas olha a simplicidade. há frases muito bonitas. Gosto do final.
Ana Prado

 
At 5:08 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Duarte,

Aguardava ansiosamente o teu regresso a estas lides.

Beijos,
Rute

 
At 6:50 da tarde, Blogger DT said...

Eis algo que anseio por fazer mas que nunca fiz. Sair de casa com papel e caneta no bolso.

Mas saúdo o teu regresso.

Abraço

 
At 11:47 da tarde, Anonymous Anónimo said...

É com alegria que dei uma olhadela no blog... estás cada vez melhor... um texto recheado de simplicidade mas com extrema perspicacia... sempre atento ao que de mais bonito nos rodeia... um momento prazeroso... :-)
Di...

 
At 6:53 da tarde, Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Olá Duarte

Está linda esta história, bem escrita bem contada. Eu às vezes também me sento num banco de jardim e tenho notas bastante interessantes e situações muito ricas a nível descritivo. Quão enriquecedor pode ser um banco de jardim.

Um beijo grande

 
At 4:11 da tarde, Blogger musalia said...

gosto de observar quem está e quem passa, é enriquecedor. nada melhor que um banco de jardim :)
também tenho gestos idênticos, de tomar notas e recolho olhares curiosos sobre o que estarei escrevinhando.

o que escrevias já fiquei a saber. e foi muito belo :)
beijos.

 
At 2:56 da manhã, Blogger Ana said...

Duarte
Li devagar, imaginei-te no banco de jardim e imaginei o homem sentado a teu lado e que trouxeste no teu bloco de notas! Está aqui... vivo!
Um beijo.

 
At 3:07 da tarde, Blogger A. Narciso said...

Um conto de quem sente a pena e o papel. Gostei Duarte.
Abraço

 

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