sábado, fevereiro 17, 2007

Esboço da Alma da Melodia


Há muito tempo que busco o ensejo de escrever ao som de uma música. Certas sonoridades resultam como verdadeiros catalizadores de inspiração, tipo enzimas que transformam uma visão supérflua e insignificante, numa sublimação de pura poesia e encanto. Num feitiço mágico, varre-se-me todo a amálgama de escória que sobeja deste quotidiano, e qualquer observação ultrapassa o sentido estritamente visual, desembocando numa contemplação feérica, apaziguadora das minhas convulsões mais profundas. Sou levado pela brandura de uma bola de sabão que se eleva nos céus numa tarde amena de qualquer estação, enquanto à minha volta, o mundo ganha contornos coloridos, irisados pela película sensível que me protege periclitantemente; por ora a música atinge o seu auge, como se ela traduzisse o momento em que alcançamos o alto da nossa vida, num rasgo de plenitude onde a inflexão está iminente e graceja com ironia. Vogo nas alturas, errando na leveza da atmosfera onírica. As notas agudas dos violinos recrudescem e anunciam a germinação de novas vidas, na puerilidade graciosa das suas variações, enquanto os graves do violoncelo assomam desapiedados, neste interlúdio que alerta para a finitude desta bola, da sua frágil camada que perde brilho e esplendor, na cadência lenta da melodia que se vai aproximando do termo, corroborada por este piano que toca esparso e ausente, abreviando a visão que já não era deste lugarejo que me peia os dias, mas uma ilimitada amplitude que me levou a espreitar a essência de tudo. Simples e bela a viagem, mas efémera como a protecção da película cristalina que se esvai à medida que as cordas cessam, e o piano se silencia, soçobrando um eco suave e distante do último violino que, em lamentos cada vez mais sumidos, finda a miraculosa melodia e me restitui a este recanto que me alberga, tão longe do interior onde esta música me levou.

3 Comments:

At 6:44 da tarde, Blogger tb said...

Há momentos de sonho. Este que descreveste é um deles. Consegues primorosamente descrever a viagem que nos propões através das imagens de uma música e conduzir-nos a esse mundo de sonho de onde não queremos regressar, tentanto, por isso prolongar a música...
Muito bom, como sempre.
Beijinhos

 
At 1:44 da manhã, Blogger Ana said...

Que bom voltar a ler-te, Duarte.
Tinha tantas saudades do Desfiladeiro.
Um abraço com muita amizade.

 
At 5:01 da tarde, Blogger clarinda said...

Duarte,

compreendo perfeitamente o que dizes. A música é a arte suprema, ouvimo-la para lhe roubar o ritmo, a harmonia, a leveza. E depois juntamos-lhe o que sentimos, uma palavra,um silêncio, a nossa respiração, um desejo, um tempo, um espaço, um amor uma peripécia, um desfecho.

Beijinhos e que essa música nunca se cale em ti.

 

Enviar um comentário

<< Home