quinta-feira, maio 17, 2007

Artistas Anónimos


Paris musician in louvre metro station - Michel Setboun

A sobrevivência nesta montanha russa de variações imponderáveis, cada vez mais acelerada, é uma epopeia que, na iminência de qualquer distracção pode projectar-nos para a penúria, em que as subidas, as descidas abruptas, os súbitos loopings e toda a dinâmica física nos faz fremir num carrocel possesso, que rodopia, ensaia milhentas manobras que, sem o mínimo de requisitos de segurança, nos relega para a margem da dignidade, numa autêntica cruzada contra esta velocidade vertiginosa. No entanto, a capacidade de adaptação do ser humano é notável e em condições extremas somos capazes de rebuscar no baú dos nossos andrajos humanos, força e engenho para superar adversidades.
Trocar a vida rural cruenta de um país cuja esperança era uma utopia, em que a maioridade era sinónimo de apronto para a guerra colonial, uma batalha sem explicação, de razões dúbias para aplicar um eufemismo, mais valia desenraizar prematuramente e procurar outras venturas. No entanto, o sucesso não contempla a todos, por acasos arbitrários, por razões que a razão nem sempre explica. E na urgência, há que descortinar um talento latente, um atributo a potenciar, uma predestinação.
O desenvolvimento de talentos, nomeadamente para a música, pintura, e outras artes, algumas circenses de rua, afigura-se como potenciador de saídas profissionais para muitas pessoas que, entre vegetar numa ignóbil e precária existência, submetem-se ao julgamento dos passantes frenéticos do nosso quotidiano, oferendando-lhes arte, espectáculo, virtuosismo, e o que a imaginação prodigalizar. Destes, destaco os músicos solistas que descem até aos metropolitanos e, munidos de acordeão, guitarra, saxofone ou alguns instrumentos insólitos, oriundos de outras ancestralidades, vertem sonoridades que nos surpreendem pela mestria da execução, pelas melodias que ombreiam com as dos melhores executantes. Edith Piaf era cantora de rua, Compay Segundo foi repescado num período maduro da sua carreira de rua, para não citar outros exemplos.
Quando me deixo enlear pela melodia, pela atmosfera de um regresso ao som destes criadores gratuitos, não deixo de pensar na dádiva destes homens e mulheres, sempre afáveis e fraternos, procurando envolver os viajantes numa esfera de alegria e descompressão. Nos dias de melancolia, são eles que nos enchem a alma, relembrando-nos do seu reportório, clássicos da música erudita, standarts do jazz e outras músicas populares de outras longitudes que evidenciam o cosmopolitismo das grandes metrópoles. Não se contêm a oferendar o seu sorriso, não obstante os sulcos faciais que adivinham vidas sofridas; poucos imaginam o que está para além daquela aparente jovialidade, quanta força interior é requerida por umas parcas moedas… vagueiam de linha em linha, de vagão em vagão, indiferentes à iníqua e desigual distribuição de riqueza dos que os circundam e escutam na indiferença, uns perturbados, outros imensamente gratos que, com ou sem donativo, lhes reconhecem o talento e a missão em feições veladas de satisfação.
Estes anónimos, alguns de forte magnetismo e dotados de recursos virtuosos admiráveis, iluminam o nosso quotidiano, povoam os metros de cidades mais extensas e populosas, curiosamente mais caracterizadas pela ansiedade, stresse e frenesim, contudo, são estas almas errantes que, por comparação com a nossa ditosa realidade, nos irrigam de felicidade pelo conforto egoísta de sabermos que outras indigências vagabundeiam com decoro, tocam e executam com brio. Em lugares onde a estupidificação humana não resultou de uma hierarquização grosseira de acordo com as oportunidades mundanas, estes normalmente destinos onde a cultura é abraçada e ovacionada, onde a gentileza humana priva com a indigência e com estes artistas, integrando-os numa sociedade tolerante e justa, estes homens/mulheres são reconhecidos e gratificados, fazendo parte de um mundo que os insere na sua dinâmica.
Muitas vezes apetece-me aplaudi-los, encetar um diálogo com eles, mas detenho-me. São partes indissociáveis deste quotidiano frenético, mais integradas onde a cultura e a música são artes que a sociedade privilegia e valoriza. Infelizmente não é a nossa portuguesa.
Observo-os disfarçadamente em cada regresso, receio que a minha condição adivinhe no meu olhar, o desdém ou a provocação que não sustento. Olho-os com comiseração, mas sobretudo com respeito e admiração. Com enlevo até. Temo ainda que o deleite com as suas actuações e arranjos melódicos se expresse em demasia, obrigando-me à dádiva que, no fundo, perseguem legitimamente, donativo a que têm direito de forma democrática e voluntária. E se muitas outras actividades socialmente agigantadas e obscenamente remuneradas fossem objecto de apreciação e recompensadas de acordo com a satisfação e mérito causados nos outros, muitos compaginados com o sucesso viveriam na precariedade pária e crua. Artistas deste quilate, seriam ilustres de uma sociedade diferente, porém, a sua dádiva incondicional não pode ser desprezada, e estes anónimos são para mim, estrelas, verdadeiros artistas, a milhas de todos esses lacaios, trajados de importância mundana, empoados com maquilhagem de ignorância, cuja forma de arte se manifesta em obsoletas posses sem melodia.

1 Comments:

At 2:56 da tarde, Blogger tb said...

porque a arte é o dom que nasce dentro de cada um independentemente das regras de cada sociedade em diversos tempos...impressões da cidade da luz? :)
Ler-te, meu amigo, é sempre um prazer redobrado a cada instante que o faço.
Beijinho

 

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