domingo, junho 17, 2007

O Engraxador do Mercado (1)


Foto tirada daqui

Os primeiros raios primaveris de sol coroavam os montes e os edifícios de cor, fazendo rejubilar o amarelo-torrado das paredes do Mercado dos Lavradores, num processo cálido, igual ao que ataviava as fachadas das ruas de um recanto africano pachorrento. Reinava um crescente bulício nas imediações deste armazém. Os agricultores, oriundos dos vários quadrantes da ilha, descarregavam os produtos recheados de suor e brio. Eram de todos os géneros e feitios, de todas as cores e formas. A terra fecunda do campo prodigalizava frutos e verduras em profusão, mas exigia sacrifícios árduos, até atingirem o aspecto fresco, maduro e viçoso que conquistava o citadino e era chamariz do visitante. Sediado na freguesia de Santa Maria Maior, o Mercado escancarava para os citadinos portadores de insónias, ou aqueles madrugadores zelosos. Os outros vinham mais tarde, turistas que viam representada na panóplia de produtos, a magia da natureza da ilha.
Na parte traseira do Mercado, ali virada para a Rua da Boa Viagem, os transeuntes ouviam o eco vociferante dos vendedores que, em pregões, esgrimiam argumentos para vender o seu peixe. Respiravam-se aqueles eflúvios provenientes da safra que jazia capitulada nos balcões alvos de mármore. Eram filas de espadas pretas, e na época deles, atuns e gaiados. Noutros recantos do Mercado, misturavam-se odores de frutas, com fragrâncias de flores que as mulheres exibiam com graciosidade, vestidas de traje típico, ali sob as arcadas que acediam ao largo central.
O Serafim, miúdo natural da zona velha da cidade, aprontava a caixa preta, gasta pelo uso, com um pedal metálico reverberante, num recanto defronte da entrada do Mercado, preparando-se para engraxar o calçado de turistas e outros imprevidentes no asseio dos sapatos. Fazia-o por herança da profissão do pai, entretanto colocado como artesão na Fábrica de Chapéus, em plena Rua Santa Maria. Tinha de se contentar em limpar os sapatos dos outros, enquanto calçava umas sapatilhas esfarrapadas. Apesar dos seus tenros dezasseis anos, exercia a actividade com afinco, sendo mais requisitado que os outros engraxadores de profissão que se posicionavam nas proximidades.
Entre crisântemos, dálias, orquídeas, estrelícias, proteias e demais ramagens, perdia-se a Dona Rosa, baptizada assim pela sina de vender flores. Trabalhava no interior do Mercado, ali paredes-meias com a actividade do Serafim. Era sua amiga, tendo a caridade de, por vezes, lhe oferecer uma fruta ou um naco de pão, pois o miúdo era descuidado e a orfandade de mãe deixara-o perdido na sua imberbe condição. Comiserada, Dona Rosa zelava pelo rapaz, dando-lhe a guarida matriarcal. Era vizinha de casa, lá para os arrabaldes da praia de São Tiago. Ali mesmo, encafuado pelo Forte do mesmo nome, outrora protector de investidas de corsários, agora observador e conivente com as aventuras fugidias do Serafim. Eram clandestinas, pois, na opinião do pai, as incursões ao mar não lhe ditavam qualquer ventura, além de estar atreito a relações com gente-do-calhau, pouco prestigiada por aquelas bandas. Das muralhas, encimadas pela pedra vermelha do Forte, avistava-se o Porto do Funchal.
Assim que as ruas da cidade despovoavam, o Serafim regressava a casa, carregando às costas a caixa onde reunia as latas de graxa, cremes, escovas, panos e demais atavios de sapatos. Tinha de prestar contas ao pai – o Sr. Joaquim –, que reunia o mísero montante do seu ganho ao da sua actividade de artesão, totalizando uma ínfima quantia para sustentar os seus quatro filhos. À revelia do mentor, o Serafim ia amealhando as gratificações provenientes de caprichosas gorjetas. Tinha o fito de comprar um óculo de mergulho e umas barbatanas para poder explorar a costa anexa à praia de São Tiago. Por agora, juntava-se com alguns miúdos dali, também eles afeiçoados aos aromas marítimos. Mergulhava sem equipamento, mas o sonho de explorar a costa com outras condições, fosse para colher umas lapas, andar na apanha dos caranguejos ou simplesmente explorar a vida subaquática, fascinava-o sobremaneira. Era de somenos importância a hora de almoço, abdicando frequentemente desta refeição para dar um mergulho clandestino a meio do dia. Fazia-o sub-repticiamente, à revelia do pai, não fosse um circunstante bufar-lhe que o filho se esquivara de engraxar calçado no Largo dos Lavradores. (...) (continua)

1 Comments:

At 11:41 da tarde, Blogger Rubi said...

Espero pelo próximo episódio. Tenho saudades da azáfama das quintas-feiras de antigamente, em que à noite o mercado enchia-se de agricultores que vendiam aos comerciantes de toda a ilha. Saudade...!

 

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