segunda-feira, novembro 26, 2007

Migração Nocturna


Foto de Irina Futivic

A noite espessa e fria não debandava a sofreguidão mundana pelo negócio. Ecoavam pregões por toda a doca, e os barcos, na untuosidade vagarosa da noite, iam e vinham, levando cansaço, trazendo nostalgia.
Infiltrado na cruzada deste tumulto comercial, detive-me a poucos metros da amurada. Para lá estendia-se o mar calmo, amigo, parecendo um rio. Soprava uma brisa gélida que congelava o crepúsculo, mas não serenava as gentes, nem a usura, tão-pouco a berraria de ávidos vendedores, procurando persuadir necessidades nos passantes das formas mais engenhosas. Fixei-me no dourado, este porto de abrigo moldado pelo divino, relanceando a Ásia ao passar da ponte. O torpor tomou-me, enquanto degustava o ar marinho que afluía concentrado como a noite, adocicado de vida. Em meu redor tresandava gente, num rodopio indómito, formigando numa colónia imensa, ao passo que eu, fixado no primordial, pleno de abundância, repleto de fartura, contemplava. O deleite levitou-me na atmosfera mística e senti-me transportar para a dimensão do berço, revisitando esse lugar meu, noutro tempo, noutra época, noutra circunstância. Sentia-me dali, estranhamente familiarizado com o cheiro e a vibração. Foi nesta viagem que me apercebi que, a poucos metros de mim, varria um homem de farda fluorescente. Indumentava unicidade. Fitou-me. Não lhe invadi o olhar; desviou-o quando denotei a sua presença. Notei que o meu campo magnético sintonizava a mesma frequência do dele. A nossa atmosfera, distante da dali, embebia-nos numa redoma cúmplice, num ritmo que acertava o compasso exacto. Petrifiquei quando olhei à nossa volta e vi que estávamos protegidos por uma aura energética, pelo magnetismo de uma energia cósmica que nos suspendia e ausentava daquele frenesim. O bulício circundante estava confinado ao exterior deste círculo enfeitiçado. No seu interior, nem ruído, nem frio, nem agitação: apenas magia, numa suspensão espacial e temporal. Somente nós os dois comunicando no silêncio, perscrutando o infinito. Fizemo-lo com mesura, enquanto a azáfama dominante, como que evitava os metros que nos velavam. No decurso de uns instantes, vi-o continuar a recolher os despojos da abundância, enquanto eu colhia fragmentos de um silêncio que insistia existir, não ali, mas num lugar além que perscrutava no firmamento. Ele era uno contra a imensidão de despojos de uma vida farta, avarenta e gulosa; eu estava sozinho, solidário com a sua impotência, admirando o seu decoro. Perdia-me num contemplar longínquo, exortava os céus ou lá o que lhes pertencesse. Indubitavelmente, eu não pertencia a ninguém, era ovelha tresmalhada que errava na abundância, penando fomes de infinito. Recompus-me, procurando perpetuar o momento, mas como em qualquer passo de magia, ele foi fugaz e breve, tal qual um orgasmo repentino. Desfez-se a magia e a agitação deglutiu-nos. Sugou-nos para a efervescência da cidade, algemados por forças que só esta possui, por méritos que lhe imputei, pela singular vibração que me inundou numa chegada emocionada e feliz, numa despedida que não tive.

13 Comments:

At 11:22 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Continua sempre meu Amigo,sempre a escever,sempre a deixar um pouco de ti para que possamos ser tocados por ti.Escreve sempre, principalmente por isso...

A amiga quase ex-lisboeta.

 
At 8:13 da tarde, Blogger sOl said...

Incrível dom..

Inspirador*



sOl*

 
At 10:25 da manhã, Blogger clarinda said...

Que direi deste?,uma catadupa de imagens, de grande intensidade, um ritmo inebriante alternando o silêncio e o ruído. Um final surpreendente.

A cidade, esta é fácil para mim.

Beijinhos

 
At 10:35 da tarde, Blogger Carla said...

Palavras cinzeladas de um beleza ímpar... Ficarei atenta...

 
At 12:49 da tarde, Blogger deep said...

Olá.

Vim aqui parar via Carla, a menina que comentou antes de mim.

Detive-me no primeiro texto, de que gostei bastante. Fez-me ter vontade de experimentar sensações idênticas, de partir para outras paragens.

Voltarei, logo que possa, para ler os restantes.

Boa semana.

 
At 1:42 da tarde, Blogger Madeira Inside said...

Ao tempo, hein?
Ainda por cima foste mauzinho lá na Teia! :P Brincando

 
At 5:05 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Um talento fora do comum para se expressar liteáriamente, que nos enche a alma de imagens emocionais que nos prendem...estou por aqui há uma hora...e não me cansei.Quero deixar-lhe porem neste lugar, o meu apreço e ...Bom Natal!
valeria mendez

 
At 5:05 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Um talento fora do comum para se expressar liteáriamente, que nos enche a alma de imagens emocionais que nos prendem...estou por aqui há uma hora...e não me cansei.Quero deixar-lhe porem neste lugar, o meu apreço e ...Bom Natal!
valeria mendez

 
At 8:25 da tarde, Blogger tb said...

sabes que depois de ler esta maravilha de cheiros, cores e humanização, sinto as minhas palavras pobrs para deixar?
Deixo o meu beijo de profundo gostar

 
At 2:40 da tarde, Blogger clarinda said...

Bom Natal, Duarte!

Beijinhos

 
At 3:47 da tarde, Blogger deep said...

Feliz 2008! :)

 
At 1:04 da tarde, Blogger Lídia Lopes said...

Olá Duarte,
Em primeiro lugar quero agradecer a sua visita e as suas palavras. Ainda estou a "digerir" o belo texto que esreveu. Também é fácil para mim saber qual é a cidade, mesmo sem a imagem. Voltarei sempre. Saudações da Turquia :)

 
At 3:38 da tarde, Blogger Mim said...

Meu Deeeus!!!

Muito bom! Imagino que Istanbul tenha esse encanto, essa estranha magia... Tão multicultural, tão diferente... tão igual a si mesma!

Quanto aos encontros... há encontros assim, há pessoas que nos marcam sem sabermos muito bem porque, assim são as palavras que escreves!

 

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