Migração Nocturna
Foto de Irina Futivic
A noite espessa e fria não debandava a sofreguidão mundana pelo negócio. Ecoavam pregões por toda a doca, e os barcos, na untuosidade vagarosa da noite, iam e vinham, levando cansaço, trazendo nostalgia.
Infiltrado na cruzada deste tumulto comercial, detive-me a poucos metros da amurada. Para lá estendia-se o mar calmo, amigo, parecendo um rio. Soprava uma brisa gélida que congelava o crepúsculo, mas não serenava as gentes, nem a usura, tão-pouco a berraria de ávidos vendedores, procurando persuadir necessidades nos passantes das formas mais engenhosas. Fixei-me no dourado, este porto de abrigo moldado pelo divino, relanceando a Ásia ao passar da ponte. O torpor tomou-me, enquanto degustava o ar marinho que afluía concentrado como a noite, adocicado de vida. Em meu redor tresandava gente, num rodopio indómito, formigando numa colónia imensa, ao passo que eu, fixado no primordial, pleno de abundância, repleto de fartura, contemplava. O deleite levitou-me na atmosfera mística e senti-me transportar para a dimensão do berço, revisitando esse lugar meu, noutro tempo, noutra época, noutra circunstância. Sentia-me dali, estranhamente familiarizado com o cheiro e a vibração. Foi nesta viagem que me apercebi que, a poucos metros de mim, varria um homem de farda fluorescente. Indumentava unicidade. Fitou-me. Não lhe invadi o olhar; desviou-o quando denotei a sua presença. Notei que o meu campo magnético sintonizava a mesma frequência do dele. A nossa atmosfera, distante da dali, embebia-nos numa redoma cúmplice, num ritmo que acertava o compasso exacto. Petrifiquei quando olhei à nossa volta e vi que estávamos protegidos por uma aura energética, pelo magnetismo de uma energia cósmica que nos suspendia e ausentava daquele frenesim. O bulício circundante estava confinado ao exterior deste círculo enfeitiçado. No seu interior, nem ruído, nem frio, nem agitação: apenas magia, numa suspensão espacial e temporal. Somente nós os dois comunicando no silêncio, perscrutando o infinito. Fizemo-lo com mesura, enquanto a azáfama dominante, como que evitava os metros que nos velavam. No decurso de uns instantes, vi-o continuar a recolher os despojos da abundância, enquanto eu colhia fragmentos de um silêncio que insistia existir, não ali, mas num lugar além que perscrutava no firmamento. Ele era uno contra a imensidão de despojos de uma vida farta, avarenta e gulosa; eu estava sozinho, solidário com a sua impotência, admirando o seu decoro. Perdia-me num contemplar longínquo, exortava os céus ou lá o que lhes pertencesse. Indubitavelmente, eu não pertencia a ninguém, era ovelha tresmalhada que errava na abundância, penando fomes de infinito. Recompus-me, procurando perpetuar o momento, mas como em qualquer passo de magia, ele foi fugaz e breve, tal qual um orgasmo repentino. Desfez-se a magia e a agitação deglutiu-nos. Sugou-nos para a efervescência da cidade, algemados por forças que só esta possui, por méritos que lhe imputei, pela singular vibração que me inundou numa chegada emocionada e feliz, numa despedida que não tive.
13 Comments:
Continua sempre meu Amigo,sempre a escever,sempre a deixar um pouco de ti para que possamos ser tocados por ti.Escreve sempre, principalmente por isso...
A amiga quase ex-lisboeta.
Incrível dom..
Inspirador*
sOl*
Que direi deste?,uma catadupa de imagens, de grande intensidade, um ritmo inebriante alternando o silêncio e o ruído. Um final surpreendente.
A cidade, esta é fácil para mim.
Beijinhos
Palavras cinzeladas de um beleza ímpar... Ficarei atenta...
Olá.
Vim aqui parar via Carla, a menina que comentou antes de mim.
Detive-me no primeiro texto, de que gostei bastante. Fez-me ter vontade de experimentar sensações idênticas, de partir para outras paragens.
Voltarei, logo que possa, para ler os restantes.
Boa semana.
Ao tempo, hein?
Ainda por cima foste mauzinho lá na Teia! :P Brincando
Um talento fora do comum para se expressar liteáriamente, que nos enche a alma de imagens emocionais que nos prendem...estou por aqui há uma hora...e não me cansei.Quero deixar-lhe porem neste lugar, o meu apreço e ...Bom Natal!
valeria mendez
Um talento fora do comum para se expressar liteáriamente, que nos enche a alma de imagens emocionais que nos prendem...estou por aqui há uma hora...e não me cansei.Quero deixar-lhe porem neste lugar, o meu apreço e ...Bom Natal!
valeria mendez
sabes que depois de ler esta maravilha de cheiros, cores e humanização, sinto as minhas palavras pobrs para deixar?
Deixo o meu beijo de profundo gostar
Bom Natal, Duarte!
Beijinhos
Feliz 2008! :)
Olá Duarte,
Em primeiro lugar quero agradecer a sua visita e as suas palavras. Ainda estou a "digerir" o belo texto que esreveu. Também é fácil para mim saber qual é a cidade, mesmo sem a imagem. Voltarei sempre. Saudações da Turquia :)
Meu Deeeus!!!
Muito bom! Imagino que Istanbul tenha esse encanto, essa estranha magia... Tão multicultural, tão diferente... tão igual a si mesma!
Quanto aos encontros... há encontros assim, há pessoas que nos marcam sem sabermos muito bem porque, assim são as palavras que escreves!
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