segunda-feira, abril 07, 2008

Dona Vitória (1ª parte)

Na descida do caminho para o engenho, o ar adensava de maresia, e o ribombar das ondas entrecortava, espaçadamente, a quietude da vila. O muro de cimento que ladeava o caminho, carcomido pelas agruras da humidade e do tempo, era solário de lagartixas que se refastelavam na amenidade do meio-dia. O ócio reinava e a tépida laje de cimento que o sol aquecia, servia de pista para as proezas pueris das jovens rastejantes, enquanto as mais velhas se exibiam em rituais nupciais, acerbados pela ira de alguns machos de um verde pestilento.
Estávamos em Maio, altura em que o engenho da cana-de-açúcar laborava em pleno. Era curioso assistir ao rodopio dos miúdos, quando um daqueles bedfords se dirigia para a fábrica carregado de canas, naquele deslizar lento, acompanhado pelo rugir do motor gripado. Os pequenos mais afoitos corriam loucos no seu encalço, galgando até à carroçaria do camião, e com ele em andamento, furtavam algumas canas-de-açúcar para chuparem. De nada valia ao condutor vociferar imprecações ameaçadoras contra eles. Enquanto isso, as lagartixas desvairavam, frenéticas, após inalarem o aroma doce das canas, ensandecendo na ânsia de apanharem um bagaço rejeitado por um garoto.
Após contornar a esquina que virava para a Rua Dr. João Abel de Freitas, passávamos a taberna do Rapa, famosa pelos seus apetitosos petiscos, confeccionados para engodar os bêbados da freguesia. Seguindo adiante, começávamos a ouvir a azáfama das crianças na escola; à esquerda, seguiam dois becos que davam acesso a algumas casas: um deles atalhava até ao Penedo, seguindo pelo caminho com o mesmo nome. No final, elevava-se essa formação do manto negro do litoral, onde o basalto era parcialmente submerso com a maré-alta. Voltando à rua anterior, após passar ao lado do armazém do Sr. Calisto – implantado entre os dois becos –, ladeávamos a modesta moradia da Dona Vitória. Durante o dia, era possível espreitar de soslaio para o interior do quarto, através do postigo, já que a idosa se recolhia ali, ora a bordar, ora nas suas cogitações soturnas. Acompanhavam-na os seus devotos santos, divindades que mantinha de forma ordenada sobre a cómoda que tinha defronte de si. Este apego promíscuo de devoção, reproduzido em várias versões de Nossa Senhora de Fátima, Santo António de Lisboa ou numa panóplia de imagens de Cristo e santos de fina igualha que não se conseguiam descortinar, não lhe serenava o espírito rebelde, tantas vezes acicatado pelos pequenos mais guerrilhas da escola.
A Dona Vitória vivia sozinha. Era uma senhora de idade avançada, com o cabelo grisalho e amarfanhado pelo desleixo dos anos, o que lhe dava um ar mais ameaçador, sobretudo quando a fixávamos nos olhos, pressentindo a desconfiança que toldava as suas feições: um rosto miúdo, realçando-se a pele encarquilhada pela corrosão do tempo, e um queixo proeminente e ossudo. Os lábios sumiam-se desbotados, e os seus olhos negros, apesar de penetrantes, perdiam-se sem expressão na languidez da sua decrepitude. Circulava com o tronco dobrado, acentuando a sua corcunda, pouco meritória para a sua baixa estatura. Vestia blusas de seda brancas, cobertas pelo casado de lã de cor parda que a acompanhava todo o ano, fizesse calor ou frio. O deszelo na indumentária era manifesto, nem sempre correspondendo a uma vestimenta condizente com o seu carisma; caracterizava-a uma saia de flanela, ponteada por florzinhas coloridas, num fundo branco debruado na base de vermelho. Esta veste desfazia a sua mordaz crueldade como a reverência de um professor se desfaz com a mancha de giz branco no nariz, resultante de um prurido inopinado, socorrido pelos dedos brancos do escrevinhar na ardósia do quadro.
A Dona Vitória, nas poucas vezes que saía e atravessava a rua, mostrava um andar trôpego, caminhando sobre a calçada de paralelepípedos de basalto que formavam um mosaico no chão, mais tarde conspurcado pelo asfalto. A vitória estava apenas presente no seu nome; a outra ter-se-ia esfumado no tempo, destronada pela implacável erosão que desembocava, em primeira instância, na velhice. Não era inédita a aproximação às divindades para penitenciar as extravagâncias de outras eras.
Diariamente, chegávamos às onze da manhã e os miúdos da escola saíam disparados para o recreio, trazendo com eles o seu papo-seco com manteiga. Muitas vezes trazia marmelada. Os alunos que nesse dia tinham sido incumbidos de barrar o pão, argutamente escondiam o “seu” num canto estratégico, para, episodicamente, se deliciarem com manteiga aos molhos. Enquanto isso, os mais traquinas cobiçavam os mais favorecidos pela faca da manteiga, abrindo despudoradamente quantos papo-secos lhes apareciam diante, a fim de encontrarem o mais generoso no barramento. De nada valiam os castigos das professoras. Na altura, não havia Contínua, daí valer tudo, desde que se saciassem bem os estômagos.
Lá fora, a maioria corria numa alegria esfuziante. Jogava-se ao ferrolho. Era um jogo popular que, habitualmente, gerava o alvoroço das crianças. Resumia-se a criar um grupo que ficava encarregue de apanhar, em correrias siderais, os adversários. Os que iam sendo capturados, eram encaminhados para um espaço limitado, aguardando que alguém da sua equipa os viesse salvar. A operação exigia pernas e agilidade, desenrolando-se junto à porta do armazém do Sr. Calisto, que servia de quartel-general da brincadeira. As meninas mais destemidas adoravam alinhar nestas correrias com os rapazes. As outras continham-se em pretensas conversas mais adultas, sentadas sobre o muro em frente da escola. Faziam jogos entre elas, sem o alarido desconcertante dos garotos. Todos os dias, exceptuando o fim-de-semana, a Dona Vitória via passarmos-lhe diante do postigo, em correrias loucas. Ela enfurecia com aquela folia descontrolada e não havia devoção que amainasse a tempestade delirante das crianças. Os rapazes mais destravados, apercebendo-se da ira da velha, faziam-lhe as partidas mais inimagináveis. Os adornos de loiça, os bonecos de porcelana e toda aquela procissão de figuras hirtas na cómoda do quarto, eram, variadíssimas vezes, alvo de jogos de pontaria, em que o rapaz capaz de derrubar uma daquelas figuras com uma pedra certeira, alcançava, nesse dia, a fama. Exaltávamos-lhe admirados pela sua ousadia de herói; já as meninas mais bem comportadas, vilipendiavam-nos. Em resposta a actos dessa natureza, a idosa erguia-se, praguejava e abria a porta, ameaçando os miúdos que se escapuliam entre risos tensos. As raparigas fugiam e, assim que conseguiam uma distância de segurança, ralhavam com os rapazes. A Dona Vitória exasperava e ameaçava matá-los, pasme-se! Apesar da idade, os rapazes tinham medo da velha, mas os louros de alcançarem o feito do derrube de uma daquelas imagens, compensava largamente. A observação mais atenta da formatura das imagens na cómoda mostrava que, algumas delas, estavam amputadas de braço, outras com o nariz partido, decepadas de cabeça ou com a aura divinal torta. (...)

2 Comments:

At 12:13 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Um texto muito bonito, Duarte.

Penso que todos nós acabámos por ter, da infância, a memória de uma "dona Vitória", não é?

Recordar deste modo tão vivo e desenvolto é que nem todos conseguimos. :)

Boa semana. Beijinhos

 
At 4:00 da tarde, Blogger Berta Helena said...

Que história bonita, bem contada. Algumas dessas memórias confundem-se com as minhas.

 

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