quarta-feira, abril 09, 2008

Dona Vitória (Final)

(...) Passávamos períodos de calmaria, mas a Dona Vitória, de quando em vez, vinha à baila. Certo dia, alguém se lembrou de mandar para dentro do quarto, através do postigo, duas lagartixas irrequietas. O alvoroço foi retumbante, embora ninguém tenha assistido como ela se desenvencilhou daqueles répteis repugnantes. Normalmente, a lagartixa desorientada trepa inadvertidamente pelas pernas fora, provocando um alarido e gritarias insólitas, talvez esta tenha feito isso mesmo, a avaliar pela voz áspera e irada da idosa que, debitando calão de grossa estirpe, saiu para a rua com uma enorme faca. Tinha, à-vontade, umas quinze polegadas só de lâmina. Ouviu-se um burburinho nervoso lá fora, precedido pela perseguição atroz a quem estava mais próximo. Porém, a destreza dos seus movimentos, impediam-na de apanhar quem quer que fosse. Todavia, este episódio, aliado à raiva que se lhe leu no olhar, provocou o pânico geral. A juntar a isso, na escola, houve bolos (método de castigo que consistia em levar vergastadas com uma régua, nas mãos) para os prevaricadores. Os famigerados recordistas eram olhados com um misto de admiração e desdém. Havia recordes de trinta em cada mão, outros que se precaviam, trazendo as mãos oleadas, pois constava que esse pré-tratamento fazia saltar a régua, não se tornando o castigo tão doloroso.
Após o episódio das lagartixas, só os adultos se atreviam a passar diante da casa da Dona Vitória. As crianças que residiam na margem direita da ribeira do Massapêz, ao invés de fazerem o seu trajecto habitual de regresso a casa, seguiam pela escola afora, num percurso inverso e mais longo, mas que evitava a passagem diante da casa da velha. Volvidas algumas semanas, só alguns rapazes mais corajosos recomeçaram a passar por ali, mas faziam-no tomando as devidas precauções, não fosse a idosa desentorpecer os músculos das pernas e alcançá-los num ápice, podendo daí resultar consequências fatídicas. Ninguém tinha esquecido o acontecimento que lhes tinha causado tanto pavor, nem o brilho daquela faca demoníaca nas mãos da idosa.
Até o sol, encandeado pelo reflexo lancinante da faca, espreitava timidamente pelo postigo do quarto da mulher. Lá do outro lado, a rocha da penha de águia velava a vila, enquanto a Dona Vitória calcorreava as imediações da casa, carregando um balde de água trazido do fontanário da praça ou levando, num tacho, restos de comida para os gatos do Senhor Brás. Quem não assistia a este gesto, perscrutava, sem êxito, em busca de um resquício de generosidade naquela senhora.
Com os anos, várias gerações de alunos foram passando por aquela escola, e os atropelos à velhota continuaram, mas, teimosamente, manteve-se no seu recanto, confiante na sua insurrecta coragem para enfrentar os miúdos. Fê-lo com mais um ou outro percalço, sendo as suas aparições cada vez mais raras.
Viveu na casa térrea, coberta por telhado de quatro águas, com o quintal que coincidia com a rua, onde as crianças brincavam no recreio da escola. Raramente espreitava pelas janelas escarlates que se dispunham aos pares em cada flanco da habitação caiada de branco, mas abria-as intercaladamente.
A porta vermelha do postigo, por onde deram entrada as traquinices e saíram as iras da Dona Vitória, um dia deixou definitivamente de se abrir…
João Duarte Olim

3 Comments:

At 5:25 da tarde, Blogger deep said...

Também por cá, sobretudo nas aldeias, cada vez mais desertas, vão desaparecendo figuras que as caracterizavam e de quem se contam histórias pitorescas e se vão, assim, fechando portas.

Bom resto de semana. :)

 
At 9:25 da manhã, Blogger Berta Helena said...

Vim ver como terminava a história da Dona Vitória. Só não gostei das lagartixas, mas isso é uma questão pessoal. Mas o texto espelha tantas realidades dos meios pequenos...

 
At 4:44 da tarde, Blogger tb said...

memórias de nós e dos outros que se vão pela lei da vida, perdendo, ou será da morte?...
beijinho

 

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