terça-feira, fevereiro 26, 2008

Errância Cultural



Um dia cheguei a Paris, aflorei da estação de metro do Luxembourg, ali para o bairro latino, a pouca distância do Panteon. Insuflei o ar primaveril que intencionalmente procurei, e espraiei o olhar esbugalhado para um inexprimível cenário. A elegância erguia-se com lisura, e por entre o labirinto urbano, irradiava uma harmonia que antes imaginava a preto e branco, mas que desfilava colorida. Paris estendia-se janota ante mim. Depois de condescender um tempo ao pasmo, segui e penetrei no jardim do mesmo nome. Fui interagindo com cheiros, cores, poses, andares, ritmos, no desejo de me imiscuir com urgência no seu seio: só assim sou capaz de sentir o pulsar do lugar, prestar-lhe a mesura de um tributo, compaginado com a toada da sua alma. E que alma... No seio da cidade e da cultura, tão familiar como este respirar livre da poalha pútrida que trouxe da ilha, senti-me sugado para a quimera, como se alguma irmandade me esperasse desde a pretérita eternidade, e me determinasse uma nova ordem, uma eternidade renovada para o meu porvir. Circunvalavam-me manifestações sôfregas por conhecimento, a cultura estanciava nos jardins, e os livros floresciam deles, pousando sobre cavaletes delicados de dedos jovens, de mãos que eram sustentáculo de compêndios que se abriam aos olhos de quem os ama. O saber emergia, patente em esparsas cadeiras que se dispunham em simetria ilógica, contrapondo com a geometria de corredores verdejantes e mosaicos efervescentes de vida, encabeçados por um lago de curvilíneo recorte. Ao cimo, o palácio. A cada recanto, refastelava-se sob as insígnias do dourado, um sol de Abril desavergonhado e cálido que dilatava a absorção das ideias e filosofias. O deleite untuoso era varrido por uma fragrância suave que não alienava a irrigação de jardins cerebrais, nem comprometia a fruição prazenteira vespertina. Quis embeber-me naquele imaginário, mas apenas consegui o reconforto que a esperança de um Éden das ideias, existisse de verdade. Pareceu não ser miragem. Sustenho a dúvida, não contrafeito ao assombro. Viçosas flores adornavam este cenário que julguei esquecido em anos predecessores, aqueles em que o acordeão pautava a toada da cidade, e diria, da saudade. Este sentimento, embora sem significação directa do português, era profuso no fado, na poesia e na alma lusa, todavia, abundava ainda na música que transportei até à minha errância, onde dominavam as canções de Aznavour, Piaf, Bécaud, Moustaki todas portadoras da mesma poesia, de uma alma que vou perscrutando, da intervenção como causa social e política, de delicadeza subtil que percebi compaginar com estas paredes que viram tudo o que sonhei... e o amor! Indissociável da magnanimidade, primordial. Quis ser parte das memórias que as paredes cerram religiosamente, mas somente me sobejam estas oportunidades afortunadas, porém fugazes de revisitar lugares assim, com tanto de delicadeza, tão pouco de chauvinismo. Oiço a língua francófona e espreito. Associo-a a cultura e embeveço à sua musicalidade. Da música francesa, posso dizer que evito-a, faz-me pranto e esmaga-me de saudades. De quê? Não sei.
Quero voltar à Luz para aferir da fidedignidade da sensação primeira, ou talvez seja preferível por cá permanecer acreditando puerilmente em países das maravilhas e em contos feéricos.

5 Comments:

At 10:02 da tarde, Blogger deep said...

Olá, Duarte!

Fico contente que tenhas voltado à escrita.
Li este texto com redobrado prazer, porque espelha algumas das minhas experiências sensoriais e emotivas, quando tive o privilégio de visitar Paris. O êxtase, o espanto, o indizível repetiram-se na segunda visita... criara um mito e o mito tornou-se realidade e acrescentou-se!

Quanto à música francesa, talvez ela seja o cais de Pessoa da "Ode Marítima", quando diz que "Todo o cais é uma saudade de pedra".

Bom resto de semana e boa escrita. :)

 
At 12:51 da manhã, Blogger Ana said...

Abençoadas gaivotas que me avisaram que estavas de regresso :-)
Pela forma como descreves as tuas sensações de viagem, poucos saberão como tu captar a alma de uma cidade.
Um beijo, Duarte.

 
At 9:22 da tarde, Blogger Carla said...

Estava a ver que nunca mais aparecia novo post :)- confesso, gosto de te ler!
O cheiro a cultura deixa-me deliciada, tal como acontece contigo. Permite-me sublinhar uma frase que sobressai: "Quero voltar à Luz para aferir da fidedignidade da sensação primeira, ou talvez seja preferível por cá permanecer acreditando puerilmente em países das maravilhas e em contos feéricos."
A luz parece adivinhar um convite à introspecção, ao entendimento...

 
At 10:42 da manhã, Blogger clarinda said...

Olá Duarte,
sigo-te os passos por Paris, e embora digas que evitas a música francesa fizeste com que eu procurasse no youtube o Moustaki e o seu ' Le Metèque'.

beijnhos

 
At 3:36 da manhã, Blogger deep said...

Olá!
Fico à espera de poder "viajar" de novo... :)

 

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