No Trilho do Preconceito

Foto tirada daqui
No decurso das minhas últimas incursões europeias, das quais, nalguns casos em visita a países ricos cuja observação mais atenta permite ter uma noção de como as sociedades destes lugares evoluem e progridem, tenho identificado pormenores comportamentais interessantes, mas sobretudo mudanças nas concepções sociais que se manifestam de diversas formas e que passo a realçar: começaria pela constatação de que, em países desenvolvidos, nomeadamente do centro e norte da Europa, ter um carro não é prioridade. Privilegia-se o transporte público e nos casos em que essa possibilidade, por razões orográficas, o permite, privilegia-se a utilização da bicicleta. Por esta tendência bem definida, costumo afirmar que as pessoas com pretensão sôfrega de ter automóveis normalmente são habitantes de países em vias de desenvolvimento, na maioria meridionais. Nem sempre os culpados são os cidadãos, mas as políticas que estimulam invariavelmente o uso do automóvel. Noto ainda que, ao contrário do sul de Itália, da Rússia, da Ucrânia, de Portugal e de poucos mais, é visível o abandono, por parte das mulheres, da utilização do sapato de salto alto. Errando pelas ruas dessas cidades, estranha-se a ausência do tic-tac sonoro dos saltos, aquele que retine nas cidades lusas, embora as raparigas e mulheres que os abandonaram não deixem de vestir com elegância, com charme, mas reproduzido em vestimentas mais jovens, práticas, desportivas e alegres. Calçam normalmente sapatos confortáveis ou sapatilhas. E se há muito já me tinha apercebido de uma certa desadequação do salto com a juventude, e que o salto alto espelha ainda a submissão da mulher aos preconceitos, por ser anacrónico e prestar vassalagem ao homem, atitude que supostamente a revolução social de 1968 já deveria ter exorcizado, reflecte ainda o quão reféns são as suas utilizadoras da imagem. São reféns dos ditames de uma ditadura feroz que as condiciona e quiçá, lhes coarctam a liberdade. E retomando Barcelona, a sua modernidade revelou o que já esperava: só residualmente se observam algumas mulheres com semelhante tacão sob o calcanhar. Atrever-me-ia a conotar a inteligência de quem utiliza salto, em contraponto com as outras, mas para não ferir susceptibilidades, prefiro não desenvolver mais. É que a liberdade de escolha é sagrada e ser-se tolerante é outro sinal de modernidade. No entanto, não podia deixar de notar que existem pormenores curiosos que podiam fazer certos psicanalistas deitar no divã certos grupos para um melhor diagnóstico deste foro. Por fim, quanto maior a importância que se dá aos títulos, mais atrasado e provinciano é o país. Quando exponho que, no meu país, se tratam por Senhor Engenheiro e Senhora Engenheira, Senhor Doutor e Senhora Doutora, como se essas pessoas a quem chamamos dessa maneira fossem assim baptizadas, todos se pasmam. Para acentuar o ridículo da situação, esta denominação extravasa os muros do espaço laboral, estendendo-se no meio social, fim-de-semana fora, etc. Para eles, europeus desenvolvidos, doutores são os médicos, ponto final! Depois aquele tratamento por “você” é tão impessoal e frio… Para não falar dos que, ridiculamente se pavoneiam por ostentar uma série de apelidos emparelhados no nome. Na maioria dos países desenvolvidos, espantam-se que eu apresente quatro nomes, os apelidos de família e os outros. Agora imagine-se seis, sete, oito e mais… coitados dos que, a este vexame se expõem, por capricho dos progenitores.
Além de comportamentos ridículos e desconchavados, é neste país, na posse de qualquer poder menor, que os medíocres se agigantam e exibem os galões ou os pobres de espírito se assenhoreiam da soberba, os tais que, nem tiveram capacidade de entender o que representa o civismo, caminhando emproados, mas que se esquecem de saudar o próximo, que sentem que um sorriso para um destituído ou idoso é uma humilhação, que olham com desdém e menosprezo para os seus. Há ainda a segregação consoante a indumentária, certos espaços estão devotos a certas classes sociais e há uma clara diferenciação no trato, consoante o estatuto social. É neste país que se vive uma democracia bacoca, onde a imagem e o banal canudo, bem como as marcas, auguram um certo nivelamento na pirâmide social. Tudo isto é a antítese da sociedade exemplar, e é nesse paradigma disparatado que se insiste em continuar a viver, até que, tardiamente, nos apercebamos de quão ridículos somos. É nesta contradição humana que muitos continuam a vociferar por valores que os seus comportamentos dúbios contradizem. No meio desta chusma de “importantes”, felizmente destacam-se os que o são realmente, de forma natural e que, por coincidência ou não, são humildes no trato e afáveis nos gestos, porém, desconhecidos da maioria.
A inumanidade inflingida aos outros destrói a nossa própria humanidade - Immanuel Kant
2 Comments:
Gostei de te ler (como sempre, aliás). Este teu texto vai ao encontro daquilo que eu penso e que me ocorre sempre que tenho oportunidade (infelizmente poucas vezes) de visitar outros países. Recentemente, estive na Holanda e pude constatar como os holandeses preferem o conforto à imagem, como não têm necessidade de ter bons carros ou casas luxuosas para serem socialmente aceites.
Estou a gostar muito de explorar as tuas opiniões, os teus pensamentos (alguns dos quais dão a entender alguns dos teus ideais) e de conhecer através de tí e da tua escrita irrepreensível e clara lugares lindos e cheios de cultura curiosa que infelizmente ainda não tive a oportunidade de visitar. No entanto, ao te ler quase parece que já estive lá!
Good work!
ass: Palavras_e_Gestos ;)
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