terça-feira, junho 19, 2007

O Engraxador do Mercado (2)


Foto tirada daqui

(...) Ao seu desamparo, valia a benquista Dona Rosa. Aconselhava-o nas vezes que o rapaz ia lá a casa, espreitando pelo postigo que costumava iluminar um dos passatempos em que se entretinha: o bordado. A rádio ia trazendo novas: notícias e músicas; na volta, exorcizava a solidão. A senhora era viúva e vivia sozinha. Era conhecida por contar muitas histórias. Teve apenas um filho que perdera a vida num fatídico acidente na África do Sul, para onde tinha emigrado em busca de melhor sorte, e para escapulir-se à guerra colonial e aos horrores do caudilho da pátria. Volta e meia, o Serafim retribuía a gentileza e bondade da mulher, prostrando-se num canto a ouvir algumas das histórias. Algumas provocavam muito enfado, impacientando-o. Porém, como miúdo obediente, lá se esforçava a ouvir. Enleados por anos de convivência mais próxima, o rapaz sentia um grande afecto pela senhora, havendo reciprocidade a rodos neste sentimento.
Certo dia, vistas e revistas as lojas de desporto do Funchal, contados e recontados os escudos que iam sobejando da sua actividade de engraxador, Serafim comprou o tão desejado óculo e as barbatanas. Não se conteve de contentamento, atravessando o Funchal a uma velocidade galopante. Apressou-se a esconder o equipamento na casa da D. Rosa, após lhe confidenciar a aquisição. A senhora, ciente dos riscos, pediu-lhe cauto, mas não negou a solicitude de guardar o equipamento em casa, para que o pai não soubesse, nem daí resultasse uma sova inclemente. Doravante, os seus mergulhos nas imediações da praia de S. Tiago seriam nítidos como o horizonte, após uma tempestade severa. Poderia permanecer mais tempo no fundo e deslocar-se com maior rapidez, por acção das longas barbatanas.
Numa tarde preguiçosa de Domingo, vagabundeando pela Rua Santa Maria, alcançou o Largo do Socorro. Foi surpreendido por uma celeuma provinda do litoral. Debruçando-se no muro, assistiu a um espectáculo que lhe gelou o sangue e esfriou a medula. Lá em baixo uns homens erguiam um lobo-marinho, ensanguentado, ainda estrebuchando na estrutura do pontão da Barreirinha. Ao largo vogava uma traineira e, dela, projectavam-se olhares ferinos que trespassavam o corpulento animal. Azoados, vociferavam; os apeados no pontão, riam boçalmente de satisfação perante a carnificina que assistiam. Zurziam o animal, impiedosamente. Este teria à volta de três metros de comprido. Debatia-se numa luta desesperada contra a morte. No seu corpo negro, corpulento, aclarado na zona do abdómen, viam-se golpes por onde escorria, abundantemente, sangue aos esguichos.
Recordava-se de já ter ouvido falar dos lobos-marinhos num programa radiofónico e noutros fragmentos de informações e ilustrações alusivas ao animal. Sabia que eram muito raros, mas aquele episódio deixara-o revoltado ante estas cruentas acções dos pescadores.
Ainda mal refeito do choque, numa manhã resplendorosa de sábado, o Serafim desceu ao calhau, que, no seu passo garoto, distava cinco minutos de casa. Viu barcos a pontuarem a baía, de cada vez que vinha à superfície respirar após um mergulho. Invariavelmente trazia algumas lapas. Enquanto as capturava, o António e o Rui, que o acompanhavam, deleitavam-se com o petisco. Eram amigos que se juntavam na confluência daquele mar, com aquele litoral recortado de negro, inserido na formosa baía. Adoravam capturar seres marinhos, e no caso das lapas, trincavam-nas vivas, usando a concha da própria lapa para retirar a carne suculenta da seguinte, e assim sucessivamente. Petiscavam igualmente os caranguejos vivos, chupando-lhes as patas. A maré estava baixa. O Sr. Joaquim nem sonhava que o filho já mergulhava, mostrando uma apreciável resistência e propensão natural para o mar, fazendo fé na reputação famigerada entre os amigos.
Foi num desses mergulhos que o Serafim retomou à tona e gritou: “vi um polvo, meteu-se entre as rochas!”. “Um polvo? Ena!” – exclamou o António. “Passa o arpão, Rui!” – gritou exasperadamente o Serafim. O arpão chegou às mãos do rapaz que, inspirando forte, voltou a desaparecer no fundo. Volvidos instantes, voltou à superfície e exclamou com desânimo: “afastei uma rocha, mas o polvo escapou-se”, disse. Nisto exclamou: “esperem, vi um vulto!…” Erguendo o rabo, sumiu-se naquelas águas calmas e cristalinas. Voltou à superfície algo assombrado, mas quando lhe questionaram sobre o pretenso vulto, nada proferiu, preferindo deixar-se boiar à superfície, observando o fundo do seu óculo. Do respiradouro arfava o ar encanado e ofegante. Voltou a mergulhar e permaneceu tanto tempo lá em baixo que os amigos chegaram a inquietar-se com o inusitado tempo da apneia. Quando emergiu, refez-se do oxigénio e veio até ao calhau. “O que é que viste? Falaste de um vulto!” – indagou o Rui. “Não foi nada…” – respondeu laconicamente o rapaz. Os outros entreolharam-se resignados. Juntaram as coisas e foram para casa. No dia seguinte, ao invés de ir à missa, por imposição do pai, escapuliu-se, ainda estremunhado, para a praia. Pouco passava das sete da manhã. Esperava-o um mar calmo. Inalou a maresia matinal e, depurado, fez-se à água, munido do óculo e barbatanas. Mergulhou no mesmo local do dia anterior, onde tinha avistado o vulto misterioso. No seu íntimo, ele identificara um lobo-marinho, mas deteve-se para não revelar o inesperado encontro, para não voltar a sentir a ferocidade humana contra aquele animal, reflectida nas lembranças do lobo-marinho maltratado no Cais da Barreirinha. Após algumas tentativas, a curiosidade daquela foca juvenil atreveu-se a aproximar. Rondava-o à distância e o rapaz fitava-a sempre de frente, de precaução. Tratava-se de um lobo-marinho jovem, aparentemente perdido. Inicialmente assustou-se com o insólito encontro, mas a noite anterior tinha servido de conselheira para tomar a decisão e, de forma abnegada, voltar a tentar o reencontro. Ali estava, determinado, com coragem e imbuído de pertinácia.
Decorridos poucos instantes, estava a ser alvo de investidas de reconhecimento do animal. Nadava com tanta perícia e insinuava brincadeira, rebolando, fazendo piruetas, curvando em velocidade estonteante, até aproximar-se ligeiramente do rapaz. Retorcia-se com agilidade. O lobo jovem não tinha mais de um metro de comprimento; possuía umas manchas brancas nas barbatanas dorsais, parecendo desamparado. Serafim questionou-se se não estaria perante a cria do lobo-marinho que tinha sido alvo da crueldade dos pescadores.
Apesar de ambos os seres permanecerem assustados, a aproximação foi sucedendo. Paulatinamente mais próxima. A desconfiança inicial dissipou-se na receptividade de ambos se inter-relacionarem. O Serafim tinha receio que o lobo-marinho fosse descoberto por sanguinolentos, homens boçais sem escrúpulos para os quais, só o ser humano tinha o direito de pescar e predar outros peixes.
Não conseguiu suster esta empolgante novela da natureza, resolvendo confidenciar os encontros insólitos à Dona Rosa. Esta ficou estarrecida. O Serafim estava a expor-se a um animal selvagem que, ao mínimo descuido, fulminaria o rapaz com um ataque feroz. Procurou aconselhá-lo a não interagir com a foca. Admitiu, por força da prudência que a imbuía, revelar este episódio ao Sr. Joaquim. Contudo, achou que este acto lhe imputaria remorsos pela tareia que poderia recair sobre o Serafim, sem contar com os interditos e a previsível apreensão do equipamento de mergulho. (...) (continua)

1 Comments:

At 7:52 da tarde, Anonymous Anónimo said...

A foto esta fantástica!!!
Forte de S. Lourenço - Funchal, ao fundo Ponta do Garajau, e no canto inferior direito uma das desertas, possivelmente a Deserta Grande...

 

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