O Engraxador do Mercado (conclusão)
(...) Resolveu aquietar o rapaz contando-lhe mais uma história supersticiosa, descrita como um poder mágico que, se dizia, alguns chapéus de palha teriam, se sujeitos a determinado ritual. Tudo isto surgiu no seguimento de umas dissertações sobre a profissão do pai. A Dona Rosa discorreu a sua narrativa, fazendo crer que certas almas professavam que, caso se dependurasse um chapéu de palha no galho mais alto de uma figueira, durante a noite de S. João, quem voltasse a usá-lo nessa data, nos anos subsequentes, ficaria temporariamente invisível. Segundo a versão da Dona Rosa, o encanto durava apenas quinze minutos, desfazendo-se gradualmente, começando pelo chapéu e terminando no corpo do enfeitiçado. Caso tirasse o chapéu, a magia perdia-se num relampejo. Além disso, o chapéu devia ficar bem firmado na cabeça. A senhora fitou o Serafim, enquanto este a escutava mais atentamente que o habitual. O rapaz perguntou: “quando é o dia de São João?”. D. Rosa rodou a cara e relanceou o calendário com uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. Volvidos instantes, disse: “depois de amanhã!”. “Se quiseres tentar, posso oferecer-te um chapéu desses” – disse apontando para uns chapéus pendurados no bengaleiro. Era na verdade uma crença associada a magias negras ou rituais de bruxaria.
No dia seguinte, o jovem engraxador ergueu-se mais cedo, preparou a caixa negra de pedal e dirigiu-se para o Largo onde deveria dar mais umas engraxadelas.
Na véspera de São João, não se livrou de uma valente reprimenda por chegar a casa após as vinte e três horas. De nada serviu a desfaçatez de evasivas de vária ordem. Para agravar a situação, trazia a roupa amarfanhada e vinha sujo e desarranjado. O pai ainda pensou que o rapaz se tivesse envolvido em contendas, mas não eram visíveis sinais de tumefacções ou nódoas negras, pelo que, ou o rapaz não tinha dado qualquer chance, ou outra desdita o tinha deixado naquele estado. Jantou indisposto, ouvindo o pai a debitar imprecações. Mal terminou, recolheu-se no quarto. Dormia num cubículo exíguo, sobre um beliche modesto, juntamente com o Florentino, o irmão mais novo. Tinham um pequeno rádio que os acompanhava até cerrarem os olhos.
Com a cobertura influente da D. Rosa, o Serafim conseguiu reunir alguns peixes miúdos que, por não reunirem os requisitos mínimos para a venda, eram destinados a moagem que seria utilizada na actividade pesqueira como engodo. De quando em vez, juntava um saco desses peixes e ia até à praia de S. Tiago. Os seus encontros com o lobo-marinho tornaram-se mais frequentes e culminaram com o arrojo de umas tímidas festinhas no dorso do animal. Além disso, presenteava a foca com aqueles peixes que levava. O lobo-marinho devorava-os com uma vontade sôfrega, e no final, a saciedade daquela carência era retribuída por umas divertidas acrobacias no fundo. O rapaz rejubilava por contribuir para alimentar aquela cria. A plenitude da interacção entre o animal e o homem, levou o Serafim mais amiúde ao mar. Nos dias que não o encontrava, entristecia. A saudade consumia-o. Tal como aquela que sentiu no fado que ecoava do Marcelino, Pão e Vinho, aquela casa simpática que trazia as recordações do peito, nos acordes plangentes da guitarra, na voz magoada da fadista, que evocara no Serafim, um chamamento nostálgico à mãe que já não tinha.
Sucederam-se mais alguns encontros do lobo com o Serafim. Normalmente ocorriam pela manhã, aos fins-de-semana. Cedinho demais para que o segredo pudesse extravasar as muralhas do Forte de S. Tiago. Além disso, os encontros eram marcados na profundidade, embora o animal precisasse de ir à superfície respirar. A D. Rosa era a confidente do rapaz, única depositária dos seus segredos. Confidências difíceis de velar na zona velha, na Rua Santa Maria e nas que se lhe cruzavam, propícias à proximidade, à promiscuidade e a outras ligações indizíveis. As fachadas opostas da Santa Maria opunham-se e atraíam-se. Os seixos redondos do empedrado da rua dispunham-se em fiadas, simetricamente orientadas, formando um mosaico estreito que tornava as portas todas próximas, privilegiando a partilha, mas também as desavenças. Os vizinhos tocavam-se, cheiravam-se… a mistura de cheiros dos cozinhados, nas horas de refeições, não permitia grande privacidade, revelando a escolha da receita, o peixe frito, o guisado de carne, …enfim, as posses, a condição social.
Transcorrido um ano, o Serafim lutava arduamente contra a crise da profissão. Esta começava a revelar-se uma actividade rara, pouco rentável, mais condizente com um cartaz turístico, foco das objectivas dos turistas, do que alvo dos desmazelados do calçado. Por outro lado, o comércio oferecia uma gama de produtos para que as gentes tratassem da limpeza e asseio do calçado, e os hotéis mais modernos, ofereciam escovas e graxas para limpar e lustrar os sapatos. Começou a sobrar tempo ao Serafim que o aproveitava para ir ao mar. Era compensado pelos encontros com o lobo-marinho.
No dia de São João, foi calcorreando a zona velha, subindo até ao Largo do Socorro. Ouviu brados azoados de pescadores, oriundos da zona da Barreirinha. Abeirando-se na amurada, espreitou do cimo. Aparentemente tudo parecia normal. De chofre, das redes lançadas pelos pescadores, viu uma saliência arredondada e escura a emergir, e dois olhos negros que voltavam a desaparecer no fundo… Atónito, nem quis acreditar no que avistou. O lobo-marinho estava encurralado nas redes dos pescadores. Desorientado, nem teve tempo para reflectir. Foi atingido por um lampejo que lhe anunciou o dia. A reacção foi imediata. Correu como uma flecha até casa e regressou com um chapéu de palha sobre a cabeça. Trazia um punhal metido nas calças, arma que o pai escondia na despensa. Num piscar de olhos desceu o lanço de escadas que dava acesso à plataforma que ligava ao pontão e observou expectante, transpirando raiva. Perdido, não sabia como agir, que missão o mobilizava… precisava de fazer algo. O lobo-marinho estava cercado pelas redes que o iam estrangulando, cingindo o cerco. Os pescadores vociferavam imprecações, davam ordens, mas não disfarçavam o regozijo por mais esta caçada… Volvidos poucos instantes, cinco homens apeados no pontão, segurando cada um, uma ponta da rede, começavam a puxá-la. Nas têmporas do Serafim, o sangue entrava numa febril efervescência. Berrou: “PAREM!!” Olharam na sua direcção, mas, estranhamente, parecem não terem fixado o olhar na sua presença. Desorientados, miraram para todos os lados, no fito de localizar o autor do brado. Entregue à ousadia da loucura, assim que avistou a corpulenta forma do lobo-marinho a ser içado, tirou o punhal e correu resolutamente; assim que alcançou os homens, com a traineira a poucos metros, desferiu cortes na rede e começou a cortá-la de repelão. Um dos homens, vendo a rede ceder de um dos lados, ralhou com aquele que devia estar a segurá-la: “aguenta bem isso aí!”. Dito isto, do seu lado, a estupefacção atingiu-o… diante de si, a rede parecia desfazer-se por cortes sucessivos. “Estranho! Eram fios de nylon, resistentes…” – pensou um deles. De chofre a malha cedeu e entornou o seu conteúdo. Os homens estavam completamente aturdidos. Encolerizados, visavam-se uns aos outros com calão grosseiro, vociferavam, acusavam-se, enquanto o peixe e o lobo-marinho, caídos ao mar, pisgavam-se para o largo. Um dos pescadores, assarapantado, articulou um comentário face ao que parecia avistar: “olhem lá ao fundo um chapéu de palha a andar no ar sozinho!”. “E não está vento!”, anotou. O líder da horda reprimiu-o esgazeado: “da próxima, se estiveres bêbado nem apareças!”. “Esta agora… ver chapéus de palha, depois de perder o pescado”, balbuciou irritado.
A meio da escadaria, o Serafim controlava a custo a respiração ofegante, descompassada. Olhava, derreado, para o desnorte dos pescadores que se insultavam sem tréguas. Fitou o chapéu que segurava na mão direita e sorriu. Os nervos apoderavam-se ainda dos seus movimentos. Começou a recompor-se, galgando os últimos degraus do lancil de escadas. Estirou-se no Largo do Socorro, espraiando o seu cansaço no mar distante… protegido na rectaguarda, pela igreja do mesmo nome.
No dia seguinte, o jovem engraxador ergueu-se mais cedo, preparou a caixa negra de pedal e dirigiu-se para o Largo onde deveria dar mais umas engraxadelas.
Na véspera de São João, não se livrou de uma valente reprimenda por chegar a casa após as vinte e três horas. De nada serviu a desfaçatez de evasivas de vária ordem. Para agravar a situação, trazia a roupa amarfanhada e vinha sujo e desarranjado. O pai ainda pensou que o rapaz se tivesse envolvido em contendas, mas não eram visíveis sinais de tumefacções ou nódoas negras, pelo que, ou o rapaz não tinha dado qualquer chance, ou outra desdita o tinha deixado naquele estado. Jantou indisposto, ouvindo o pai a debitar imprecações. Mal terminou, recolheu-se no quarto. Dormia num cubículo exíguo, sobre um beliche modesto, juntamente com o Florentino, o irmão mais novo. Tinham um pequeno rádio que os acompanhava até cerrarem os olhos.
Com a cobertura influente da D. Rosa, o Serafim conseguiu reunir alguns peixes miúdos que, por não reunirem os requisitos mínimos para a venda, eram destinados a moagem que seria utilizada na actividade pesqueira como engodo. De quando em vez, juntava um saco desses peixes e ia até à praia de S. Tiago. Os seus encontros com o lobo-marinho tornaram-se mais frequentes e culminaram com o arrojo de umas tímidas festinhas no dorso do animal. Além disso, presenteava a foca com aqueles peixes que levava. O lobo-marinho devorava-os com uma vontade sôfrega, e no final, a saciedade daquela carência era retribuída por umas divertidas acrobacias no fundo. O rapaz rejubilava por contribuir para alimentar aquela cria. A plenitude da interacção entre o animal e o homem, levou o Serafim mais amiúde ao mar. Nos dias que não o encontrava, entristecia. A saudade consumia-o. Tal como aquela que sentiu no fado que ecoava do Marcelino, Pão e Vinho, aquela casa simpática que trazia as recordações do peito, nos acordes plangentes da guitarra, na voz magoada da fadista, que evocara no Serafim, um chamamento nostálgico à mãe que já não tinha.
Sucederam-se mais alguns encontros do lobo com o Serafim. Normalmente ocorriam pela manhã, aos fins-de-semana. Cedinho demais para que o segredo pudesse extravasar as muralhas do Forte de S. Tiago. Além disso, os encontros eram marcados na profundidade, embora o animal precisasse de ir à superfície respirar. A D. Rosa era a confidente do rapaz, única depositária dos seus segredos. Confidências difíceis de velar na zona velha, na Rua Santa Maria e nas que se lhe cruzavam, propícias à proximidade, à promiscuidade e a outras ligações indizíveis. As fachadas opostas da Santa Maria opunham-se e atraíam-se. Os seixos redondos do empedrado da rua dispunham-se em fiadas, simetricamente orientadas, formando um mosaico estreito que tornava as portas todas próximas, privilegiando a partilha, mas também as desavenças. Os vizinhos tocavam-se, cheiravam-se… a mistura de cheiros dos cozinhados, nas horas de refeições, não permitia grande privacidade, revelando a escolha da receita, o peixe frito, o guisado de carne, …enfim, as posses, a condição social.
Transcorrido um ano, o Serafim lutava arduamente contra a crise da profissão. Esta começava a revelar-se uma actividade rara, pouco rentável, mais condizente com um cartaz turístico, foco das objectivas dos turistas, do que alvo dos desmazelados do calçado. Por outro lado, o comércio oferecia uma gama de produtos para que as gentes tratassem da limpeza e asseio do calçado, e os hotéis mais modernos, ofereciam escovas e graxas para limpar e lustrar os sapatos. Começou a sobrar tempo ao Serafim que o aproveitava para ir ao mar. Era compensado pelos encontros com o lobo-marinho.
No dia de São João, foi calcorreando a zona velha, subindo até ao Largo do Socorro. Ouviu brados azoados de pescadores, oriundos da zona da Barreirinha. Abeirando-se na amurada, espreitou do cimo. Aparentemente tudo parecia normal. De chofre, das redes lançadas pelos pescadores, viu uma saliência arredondada e escura a emergir, e dois olhos negros que voltavam a desaparecer no fundo… Atónito, nem quis acreditar no que avistou. O lobo-marinho estava encurralado nas redes dos pescadores. Desorientado, nem teve tempo para reflectir. Foi atingido por um lampejo que lhe anunciou o dia. A reacção foi imediata. Correu como uma flecha até casa e regressou com um chapéu de palha sobre a cabeça. Trazia um punhal metido nas calças, arma que o pai escondia na despensa. Num piscar de olhos desceu o lanço de escadas que dava acesso à plataforma que ligava ao pontão e observou expectante, transpirando raiva. Perdido, não sabia como agir, que missão o mobilizava… precisava de fazer algo. O lobo-marinho estava cercado pelas redes que o iam estrangulando, cingindo o cerco. Os pescadores vociferavam imprecações, davam ordens, mas não disfarçavam o regozijo por mais esta caçada… Volvidos poucos instantes, cinco homens apeados no pontão, segurando cada um, uma ponta da rede, começavam a puxá-la. Nas têmporas do Serafim, o sangue entrava numa febril efervescência. Berrou: “PAREM!!” Olharam na sua direcção, mas, estranhamente, parecem não terem fixado o olhar na sua presença. Desorientados, miraram para todos os lados, no fito de localizar o autor do brado. Entregue à ousadia da loucura, assim que avistou a corpulenta forma do lobo-marinho a ser içado, tirou o punhal e correu resolutamente; assim que alcançou os homens, com a traineira a poucos metros, desferiu cortes na rede e começou a cortá-la de repelão. Um dos homens, vendo a rede ceder de um dos lados, ralhou com aquele que devia estar a segurá-la: “aguenta bem isso aí!”. Dito isto, do seu lado, a estupefacção atingiu-o… diante de si, a rede parecia desfazer-se por cortes sucessivos. “Estranho! Eram fios de nylon, resistentes…” – pensou um deles. De chofre a malha cedeu e entornou o seu conteúdo. Os homens estavam completamente aturdidos. Encolerizados, visavam-se uns aos outros com calão grosseiro, vociferavam, acusavam-se, enquanto o peixe e o lobo-marinho, caídos ao mar, pisgavam-se para o largo. Um dos pescadores, assarapantado, articulou um comentário face ao que parecia avistar: “olhem lá ao fundo um chapéu de palha a andar no ar sozinho!”. “E não está vento!”, anotou. O líder da horda reprimiu-o esgazeado: “da próxima, se estiveres bêbado nem apareças!”. “Esta agora… ver chapéus de palha, depois de perder o pescado”, balbuciou irritado.
A meio da escadaria, o Serafim controlava a custo a respiração ofegante, descompassada. Olhava, derreado, para o desnorte dos pescadores que se insultavam sem tréguas. Fitou o chapéu que segurava na mão direita e sorriu. Os nervos apoderavam-se ainda dos seus movimentos. Começou a recompor-se, galgando os últimos degraus do lancil de escadas. Estirou-se no Largo do Socorro, espraiando o seu cansaço no mar distante… protegido na rectaguarda, pela igreja do mesmo nome.
Fim
5 Comments:
Que belo e ternurento conto, meu amigo. A magia da fantasia da criança que vive dentro de todos nós...
Como sempre uma escrita primorosamente cuidada. Gostei muito!
Beijinhos
A forma superior de celebrar a Madeira Viva...enternece-me e orgulha-me ver um madeirense com esta sensibilidade,este talento,esta cultura...
Sabe que a Madeira é um sitio optimo para se viver,tem inegavelmente qualidade de vida,mas para conseguirmos viver plenamente AQUI temos de ter o talento de ignorar...passar ao lado, da imensa mediocridade que por AQUI pulula...
Vim de novo, não há novidades mas deixo um beijo
Passei por ca para reler as delicias que escreves!!! E desta vez n resisti a deixar um comentario!!!!
Beijinhos
Agora sei o porquê do teu gosto pelo fundo do mar. Continua assim. Temos escritor.
J.Lemos
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