domingo, novembro 25, 2007

София trajada de alvura



Recebeu-me num crepúsculo melancólico, e por entre a bruma escura, fui assistindo à definição de um lugar novo, ao gradual surgimento de mais luz, de edifícios progressivamente mais altos, desproporcionados com qualquer harmonia que por ali pudesse reinar. Clarificava-se a cidade à medida que a luminosidade crescia, vencendo a noite e resistindo ao frio que se adivinhava pela indumentária de esparsa gente que errava nas ruas. A vida distinguia-se no serpentear de luzes que riscavam a noite, enquanto fui assistindo ao cisma de prédios que exibiam vetustos farrapos, diferentes, iguais na decrepitude, esboroando-se nas memórias de uma desdita recente, de reminiscências lúgubres, de penúria gravada nestas paredes carcomidas, ou noutras fisionomias que com elas interagiam em solidariedade. Sobre linhas ilógicas, deslizavam graciosos eléctricos apressados, numa pressa lenta, um ritmo que compassava o palpitar da urbe. Era neles que sonhava deslizar, auscultar aquele lugar de muitos preferido, mas sucessivamente esquecido, adormecido, não bastando o seu nome de mulher para lhe conferir a sensualidade e elegância que outras capitais ostentavam com volúpia e esplendor, de veludo e seda trajadas, com um gorro para o vento polar. Bela adormecida à espera do beijo encantado? Pudera ser eu o eleito. Procurei o remanso desta Cофия, quis adormecer nela e sentir-lhe o calor e brandura. Não o encontrei. Vi casinos para a batota, ou negócios de licitude duvidosa, de lúbrica e pecaminosa natureza. Não falarei do que não vi, apenas que senti que ali se reclamava identidade, já que protecção, esta era conferida pela esplendorosa montanha que se elevava no alto.
Fiquei atónito no meu madrugar. Pela janela observei Vitosha numa manhã de luz, tempestuosa, mas vestida de uma alvura que me era inusitada. Habitualmente ergo-me e contemplo o azul, quando não cego para o cinzento que por vezes me habita. A montanha acenou-me nestas vestes brancas engalanadas, cristalinas e frias, e na sua generosidade, estendeu um vasto manto da sua cauda, cobrindo Cофия inteira e cercanias que a integram, da mesma alma alva, purgada pelo límpido frio. Flocos brancos tresandavam sem orientação certa, esbranquiçando tudo no seu pouso. Esbugalhei neste cenário bucólico, emocionei-me com a surpresa de um amanhecer assim. No sopé da montanha, onde eu me encontrava de mão dada com София – esta alva e fria –, reagia incrédulo a esta recepção invulgarmente gélida, deliciosamente acolhedora. Hesitei, mas insuflado de coragem e agasalho, fiz-me a esta brancura, possuído pela ânsia da novidade e pelo entusiasmo de criança. Camadas fartas de neve cediam aos meus passos e eu estugava o passo contente. Era uma emoção fria, mas singular. Este traje deu um encanto especial a uma cidade que me enregelou o corpo, mas lhe dotou de mais magia para entender o seu ritmo, as suas palpitações, a vibração do seu seio. De lá trago o gelo que me depurou o sentir, que me arrefeceu a emoção de encontros desencontrados. Guardo-te Cофия no jardim das memórias, envolta em flores brancas e crisântemos multicores, sinto ainda a macieza do meu caminhar, nesse manto com que te cobriste para me receber.

3 Comments:

At 8:46 da tarde, Blogger Ana Prado said...

Da alvura da cidade não poderei falar, apenas da deste belíssimo e sentido texto.

 
At 10:13 da manhã, Blogger clarinda said...

Olá Duarte,

nas minhas deambulações já parei vezes sem conta neste texto e no seguinte, sem ter tempo de ler, porque é preciso tempo para esta tua memória e esta saudade. Não sei de que cidade falas ( podes dizer?.A propriedade das imagens que vais construindo levam-nos a ler um quadro exterior e interior. Uma boa leitura par mim neste domingo de Dezembro.

beijinhos.

 
At 8:29 da tarde, Blogger tb said...

Já cá tinha vindo, já tinha lido, relido e agora voltei. Sabes como gosto da forma e intensidade da tua escrita. Percorro contigo os caminhos que trilhas e sorrio. :)
Beijinhos

 

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