sábado, maio 14, 2011

Praça da Independência

Kiev - Ucrânia (Maio, 2009)

Os sinos dobram às sete da tarde, mas… não são sinos, assemelham-se-lhes na cadência, num repenicar de modernidade, de travo envelhecido que não condiz com esta praça, em cujo primor, parece não caber um campanário secular. É nela que o ucraniano se manifesta, é nela que o ucraniano celebra, é nela que o ucraniano estancia e se pavoneia; é nela que alguns, como eu, deixam o tempo sumir, libertando os pensamentos impregnados do dia, deixando-os fluir na amenidade da estação, no entardecer luminoso. De forma menos despercebida, não tão subtil como o alarme das horas que os dali se acostumaram, retinem no passeio os sapatos de salto das moças que, na cadência do andar, pautam o ritmo das horas, dos minutos, de relógios intemporais, inefáveis. Formigam por ali, esbeltas, vão no encalço do amor, da luxúria, de encontros enamorados; seguem hirtas, suspensas na elegância que irradiam, brilhando à luz oblíqua dos últimos raios solares que, aqui, ditam a alegria ucraniana à sua aparição. Na rua, as expressões do povo não fazem adivinhar que são predominantemente um povo de emigração. Vestem-se bem, as lojas de grandes multinacionais pululam e nem mesmo o nosso país rivaliza com a abundância desta oferta aqui observada. A boçalidade de alguns gestos, esparsos, destituídos de civismo, contrasta com outros que não enganam: uma postura assumidamente europeia.

Os ucranianos parecem não arcar com o pesadelo de Chernobyl, essa herança fatídica, funesta, outrora símbolo de prosperidade, agora uma mancha indelével no passado, já de si demasiado amargurado; a invasão soviética augurou-lhes o domicílio para a indústria mais poluente da ex-URSS, sina que, por uma qualquer desdita, os russos maquinaram, mas nem assim este povo mostra desprezo pelos russos. No todo, são irmãos, e nas conquistas do desporto, uma e outra vez não escondem a simpatia pelos vizinhos nas suas vitórias. Questões políticas não se confundem com as outras.
A praça tem elegância e uma imensidão que não é gélida nem revela traços de fealdade que a arquitectura soviética exibia. Ao longo do rio, assomam as cúpulas douradas, enquanto padres jovens ortodoxos e polícias imberbes parecem brincar aos adultos, fora da época do Entrudo. A aura é positiva, a vibração esboça sinais indisfarçáveis de esperança.
Os vendedores são respeitadores e não franzem a testa se o turista revela apenas interesse em apreciar a arte subjacente aos artigos que expõe. Uma senhora amavelmente explicou a sua arte e distinguiu matrioskas ucranianas das russas. A bonomia a que se dignou quase me envergonhou. Preocupava-me que estivesse a ser empecilho a algum bom negócio, mas ela, gentil, indiferente ao bulício, ia-me explicando em pormenor. E o pormenor da identidade ucraniana ficou na lonjura da cidade, por miríades de lugarejos que o país guarda e que, seguramente, devem expressar com maior clareza a alma destes eslavos.

1 Comments:

At 5:04 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Foi com muito agrado que li o teu relato desta visita à Ucrânia. É de louvar a tua tentativa de compreender a identidade cultural, as atitudes e os gestos, a postura perante a vida das pessoas das terras que visitas. E também a tua tentativa de correlacionar o que vês, com a Historia e com as tuas expectativas e crenças pessoais, tentado, de certa forma, desconstruir preconceitos e chamar a atenção para aspectos menos conhecidos.
Bem ajas, continua a nos presentear com mais dos teus textos muito suis generis! Elisa Xavier Mendes

 

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