quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Amizade Partilhada


Friendship, Picasso Posted by Hello

Faz tempo que estou arredado das lides da escrita. Os que gentilmente e com amizade me visitavam, devem ter-se interrogado: terá ido de férias? Estará doente? Perdeu o entusiasmo pela escrita? Está a passar por uma fase de falta de inspiração? Casou, e a mulher, de tão despótica, não admite que ele publique os seus textos? (livra!) Efectivamente, a resposta está entre as indagações aventadas. Adoraria ter ido de férias, mas costumo programá-las para Setembro. É um mês no qual tenho maior disponibilidade financeira. Agora, ando nas lonas, a contar moedinhas. É a sina de sermos os indigentes da Europa – a Europa Unida. Mas é insofismável que ainda sou dos privilegiados que saem nas férias. Voltando a Setembro, é nos dias deste mês que o horizonte adquire tonalidades tão belas, quanto inquietantes. Pressagia-se o fim do Verão, e o Inverno parece mesmo ali à espreita, mas os dias ainda são contemplados por uma generosa luminosidade, e é maior o fluxo dos que regressam de férias, do que aquele que segue em sentido inverso. E isso contribui para, nos lugares eleitos, poder conviver com a identidade desses espaços na sua maior plenitude, sossegadamente, distante dos abusos festivos ocidentalizados, permitindo conhecer as cidades no seu abrolhamento diário, no seu buliçoso frenesim, reflectido no regresso massivo à vida escolar e laboral dos seus habitantes. E como privilegio muito o social, dou particular destaque à observação das pessoas, da componente humana e das suas relações inter-específicas. Procuro sorvê-las, e é nelas que me enriqueço de vivências.
Não, não perdi o entusiasmo pela escrita. Adoro escrever, e os blogs possibilitam partilhar de uma forma intensa os nossos sentimentos, pontos de vista, ideias, entre muitas outras coisas. Alguns expõem-se de forma desnudada, outros revelam-se nas entrelinhas. Mas a escrita é um diálogo interior. É a nossa interpretação das pequenas insignificâncias da vida. A nossa visão do mundo. Por vezes sentimo-nos tentados em querer saber quem é o(a) autor(a) deste ou daquele blog, mas creio que uma partilha desta intensidade perderia o seu enlevo caso esse interesse fosse satisfeito. Ou talvez não. Considero que a partilha é mais genuína e verdadeira, subsistindo o mistério.
Realmente fui acometido por febres altas e inusitadas. Não me recordava ao certo o que era ter febre. Só ao segundo dia fui admoestado pelo cauto maternal. Coincidiu com o dia das grandes decisões para o país, com o traçar de um novo rumo – pelo menos é o que todos esperamos. E a hecatombe foi de tal ordem para a direita, que em mim, o efeito manifestou-se em estados febris atrozes. Terei sido alvo de um esconjuro? Mas, retomando o raciocínio, ainda consegui cumprir o meu dever cívico. Talvez a remota forma de expressarmos livremente a nossa vontade. A conjuntura política actual faz-me lembrar o célebre desígnio tão defendido por Sá Carneiro: “um governo, uma maioria e um presidente”. E apesar do homem não ser profeta, adivinhou o cenário que há 20 e muitos anos atrás, estabeleceu como meta, todavia, o destino muitas vezes escreve-se de forma irónica e sarcástica…
Concomitantemente, passei uma fase de teimosa improdutividade na escrita. Não me ocorria nada. Rigorosamente nada. Talvez reflexo da insipidez dos meus dias. Ou a indisfarçável falta de imaginação, que, à falta de melhor, relega-me a redigir memórias, pequenas crónicas, ou missivas insípidas. Outros há que, de tão profícua imaginação, fazem da ficção o seu porta-estandarte. Preciso de atirar achas para a minha imaginação, ateá-la até ficar incandescente e soltar-se em labaredas siderais de mirabolantes contos, de fantasiosas histórias, de textos de beleza fulminante.
Mas, neste aqui, agora, enquanto a chuva tilinta lá fora, limito-me a quebrar a linha programática do meu blog (esta expressão soou a politizada – devem ser influências da semana anterior), escrevendo-vos directamente. Até porque gosto de liberdade. Assim, falo-vos na primeira pessoa. Fazendo-o para amigos. Ou será que é mais significativa uma amizade baseada no circunstancial cumprimento da praxe, e na troca de fúteis perguntas igualmente circunstanciais que entram no rol dos que se movem por condutas socialmente correctas, gastas de tão mecanizadas e arquitectadas por sorrisos maquinais? Não será mais amizade a partilha da nossa alma, do nosso Eu mais profundo, da nossa sensibilidade para com o mundo, das nossas inquietações, do amor e seus cambiantes? É por isto que sinto lufadas de amizade em todos os que me visitam, quer deixem ou não comentário. É o obséquio que nos alenta a continuar. Aproveito para desculpar ainda os que não conseguem alhear-se de sentimentalismos, não sendo capazes de escreverem outros comentários que não sejam elogios explícitos, que nalguns casos, reagi, ligando a perguntar:
– Quanto te devo por aquele comentário que me deixaste no blog? Obviamente que me refiro a amigos. Amigos que já o eram, antes de fazer esta incursão no mundo da blogosfera. Reconheço igualmente o meu sentimentalismo, e, aos Vossos olhos, até algumas mediocridades que escrevo, transformam-se em pérolas luzidias. Diria que se assemelham a uma transformação divina.
Com ou sem imaginação, estou de regresso, mas a escrita não pode obedecer a um método, a uma programação delineada, a uma periodicidade rigorosa, mas a estados de alma, ao sentimento que nos impele a recorrer a ela, e que expele com a força de um vulcão, incandescências em forma de palavras.
E para finalizar, não tolero despotismos.

6 Comments:

At 1:39 da tarde, Blogger A. Narciso said...

Um regresso que saudo... gostei da escrita directa, falando connosco que te lêm. Sem dúvida que a escrita nao pode ser metodica, nem obedecer a encomendas... se bem que exista quem o faça. Eu pessoalmente não consigo. Partilho a tua visão dos leitores/amigos que a blogosfera nos proporciona. Também partilho da opinião dos porcos transformados em perolas... é importante destinguir o elogio sentido da simpatia... nem sempre é facil. Gostei da reflecção.
Abraço

 
At 7:18 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Com febre? As eleições deixaram-te doente, não foi? Mas o jeito para a escrita é o mesmo, febril ou não :D Beijo enorme. Belinha :))

 
At 12:59 da manhã, Blogger Ana said...

"A partilha é mais genuína e verdadeira subsistindo o mistério"
Concordo contigo. Virei mais vezes, se a porta estiver aberta... :-)

 
At 1:16 da tarde, Blogger Marta said...

Também prefiro Setembro, pelas mesmas razões. Também acredito nessa partilha. Também a inspiração me faltou. Deixo-te um beijo e as melhoras.

 
At 10:13 da tarde, Blogger clarinda said...

Olá, Duarte,
Então estiveste doente? Ainda bem que estás de volta. Descubro que gostas de escrever mas, ao contrário de ti acho que deve obedecer a um "método" misturado com um "estado de alma". O problema é que nem sempre se atinge o melhor. Como diz Agustina escrever, escrever , escrever. Sobre férias também acho Setembro a melhor ocasião.
Um beijinho

 
At 11:03 da tarde, Blogger BlueShell said...

Que bom teres regressado quando eu aqui passei....
Um texto de alguém que ansiava pela escrita como catarse...senti isso. Uma escrita lúcida, linda...requintada...aparentemente (só aparentemente) descuidada...
gosto disso.
Bjs, BlueShell

 

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