quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Sem Asas Para Voar

O conforto, tão ansiado pelo homem moderno, vem-se a constatar que aprisiona verdadeiramente. O alcance do bem-estar acomoda-nos à inércia de uma condição que não é nossa. É paradoxal a liberdade que nos és apresentada, uma vez que livres, não temos asas para voar. Ficticiamente, sentimo-nos livres, convencemo-nos que tomamos as nossas opções, mas as amarras são por demais evidentes. Os voos ficam limitados aos compromissos das dívidas e encargos que progressivamente crescem de uma forma exponencial. Somos oprimidos pela produção, pela ânsia sôfrega de que precisamos de produzir. Tornamo-nos autómatos.
A ligação que intrinsecamente nos compagina à natureza, foi suprimida, como se o cordão umbilical do mundo não fosse mais necessário. Somos desprovidos da nossa essência, e a harmonia com o universo é conspurcada por artifícios vários que nos entretêm. A poesia do frio, da chuva, do rumorejar do vento na folhagem, da maresia, do ribombar das ondas, deixou de nos ser familiar. Tornaram-se momentos raros, de indiscutível deleite, mas os quais, nossos sentidos estranham.
O emprego tornou-se essencial para a nossa auto-estima, para o nosso orgulho, para a honra e estatuto que a sociedade convencionou; em suma, para a nossa afirmação. Sem ele ficamos privados do acesso ao consumo, aos bens básicos, e a todos os serviços fundamentais. Este por sua vez (o consumo), colmata-nos carências, preenche vazios de forma fictícia, efémera. Porém, crescer, muitas vezes obriga-nos a sair, a viajar, a procurar novas experiências, outras vivências, assimilar novas formas de estar, de ser. Mas como fazê-lo? O trabalho sufoca-nos, e viajar, apenas podemos fazê-lo de férias em períodos insuficientes para qualquer transformação operar-se.
O acesso à habitação própria, jamais esteve tão facilitado. Para benefício de todos, e indubitavelmente, dos lobbies associados. Contraímos uma dívida, e desde aí somos acorrentados com amarras que nos impedem de voar. Gostaríamos de seguir outros fitos, rumar para outras latitudes, e o que era uma facilidade, virou condicionalismo. A envolvência do nosso cantinho, enlea-nos e não somos mais livres. A troco do facilitismo. Do conforto. Da acomodação. E se as escrituras narravam que “era mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha, do que um rico entrar no reino dos céus”, nada mais verdade. Que o reino dos céus representasse a Liberdade. Porque não acredito noutro.
Com apenas alguns bens, ficamos ancorados no nosso catre. Nossa mente atrofia, não nos é permitido voar. Pensar. O consumismo aliena-nos da fatalidade da morte. Centralizamos as nossas metas no alcance de bens materiais, e na quantidade profusa de tentações que nos impingem a cada instante.
O despojamento, que outrora permitia um enriquecimento intelectual e emocional, é substituído pela cultura do ter que tem o efeito de estrangular os nossos horizontes, aviltar a nossa mente; os admiráveis de ontem que com coragem e abnegação moveram-se por causas e valores, são substituídos por um rebanho de seres que em comum, têm quase tudo: comportamentos regrados, pré-concebidos, destituídos de causas e valores, sem vivências, rendidos à mediocridade da imagem e da aparência. Não lhes são discerníveis os cambiantes cromáticos do horizonte. Nem sentem uma significação mais condizente com a nossa condição humana. Tudo parece tão ocre. Insípido.
O conforto, a par da tecnologia, nem nos permite contemplar o resplendor de um nascer do sol, nem o romantismo do seu cônjuge, pôr-do-sol. Não saboreamos a magia de uma alvorada em sua cadência crescente de vida. Ignoramos a melodia da natureza, substituindo-a aos ruídos civilizacionais: carros, motores, alarmes, sirenes, buzinas, e um deambular frenético assaz ruidoso para a alma.
A tecnologia barra-nos o convívio, e embora vivamos numa proximidade física encavalitada, sentimo-nos ausentes uns dos outros. Mais solitários. Estabelecemos mais relações com a televisão, com o computador, raramente com um livro.
A isto chamamos liberdade. Liberdade que nos é oferecida como tal, armadilhada, sem que nos consigamos soltar desta ludibriação ardilosa. Mais ridículo é algumas das nossas observações, quando somos confrontados com outras culturas onde o tempo corre lentamente como um rio. Em lugares onde ainda se privilegia a contemplação, o convívio, as relações humanas na sua maior plenitude. E alguns ridículos olham com desprezo. Aqueles que de tão ignobéis, não se apercebem que não têm asas para voar, e que a dotação indigente que envolve aqueles dali, é um despojamento material que permite voar pela vida, livres, e com a filantropia intrínseca à nossa condição de gente. Aquela que já perdemos irremediavelmente.

Duarte Olim

7 Comments:

At 4:46 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Ser livre Duarte é teres a opção de escolheres: entre continuares no computador a conhecer pessoas, ou ires à procura delas; entre veres um filme que todos já viram ou procurares no escombros da literatura um livro que alguém escreveu e todos se esqueceram; é optares por viver a vida com o tempo e não deixares que seja o tempo e a sociedade a vivê-la... É saberes voar sobre este nosso dúbio céu terreno ultrapassando as basicidades que à vida apraz.
Beijo terno...
Lénia

 
At 5:28 da tarde, Blogger musalia said...

Sorrio e concordo com a Lénia. Mas o conforto apraz-nos, seduz-nos, há é que saber dosear tudo e não deixarmos que o materialismo nos domine. No entanto, é o preço do progresso, e a esse não podemos fugir...
beijos, Duarte.

 
At 1:45 da manhã, Blogger DT said...

Caro Duarte

Eu partilho dessa tua vontade de voar. Sinto-me aprisionado neste bulício urbano que caoticamente preenche o meu quotidiano.
Mas é isso que mais valorizo na (nossa) Madeira. O facto de poder pegar no carro e em 30 minutos estar no meio de nada. Apenas eu e as árvores.
Mas até quando resistirão as árvores?

 
At 11:25 da manhã, Anonymous Anónimo said...

"Muda de vida se tu não vives satisfeito/Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar/Muda de vida, não deves viver contrafeito/Muda de vida, se há vida em ti a latejar..." António Variações

Parabéns por partilhares, com muitos de nós, o que te vai na alma.

A visita à muito prometida...

Abraço!

 
At 1:59 da tarde, Blogger clarinda said...

Esta reflexão é muito pertinente e sempre actual. é sem dúvida o ponto de partida para começarmos a construir as nossas próprias asas para voar.
Um beijinho.

 
At 6:58 da tarde, Blogger Lília Mata said...

Ao ler este teu texto, lembrei-me de uma conversa recente com o meu irmão. Ele disse: "Eu nunca mais na vida quero ter casa." Ele acho que ter casa é meter as raízes para o fundo da terra e não ser capaz de partir para novos lugares, gentes, sonhos. Ele vive feliz, numa casa alugada que partilha em Londres com um iraniano e um israelita que por acaso responderam ao mesmo anúncio para alugar a casa. O próximo sonho é ir para a Austrália, e só sair de lá, depois de a ter percorrido de lés a lés, ao sabor do vento e das oportunidades. Eu sorri. Disse-lhe que fosse. "Eu é que não posso fazer uma coisa dessas!" Afinal, faltam-me ainda muitos anos para acabar de pagar o apartamento minúsculo onde durmo todos os dias, como, tomo banho e me sento às vezes à frente da televisão ou do computador.
Beijinho
Lília

 
At 4:11 da tarde, Anonymous Anónimo said...

gostamos do mesmo mês para passar férias...
abrir as asas e voar, porque a vida é efémera e há coisas que são absolutamente dispensáveis.
Deixo um beijo, levo a beleza das tuas palavras

 

Enviar um comentário

<< Home