sexta-feira, outubro 28, 2005

Épica Desventura

De que serve remares contra a corrente? Velejares contra o vento dominante, sem astrolábio nem mapas, à deriva neste mar imenso? Que luta inglória essa, qual batalha épica que travas, de final antecipadamente perdido? Servirão de alguma coisa as ousadias extemporâneas, as críticas exasperadas, os inconformismos anacrónicos, as insurreições ininteligíveis? Riposto enfurecido: afastem-se de mim! Sufocam-me o respirar! Maculam-me a alma!
Cresci tolhido por esta ânsia que me persegue, esta sede de justiça que me constrange o viver. Contudo, por vicissitudes indizíveis, apostatei. Quero libertar-me desta liberdade - pleonasmo desgarrado! Quero prender-me nas amarras que parecem glorificar os que a elas se fidelizam – os correligionários do colonialismo intelectual! Quero revelar o que sou, ao silêncio, ao vento... a quem me ama! Capitulo nesta impotência inexpugnável, nesta espera, nestes horizontes que enegrecem por nuvens poluentes que me intoxicam os neurónios, pulverizadas pelos gases de escape fuliginosos dos arrivistas.
Passam por mim, servis bajuladores, seguem numa horda virulenta…surto epidémico, cuidado…
Caso me conhecessem de verdade, desconcertavam de perplexidade. Desconhecem-me imune. Não sonham como os poetas, não amam como os cetáceos, não voam livres como os albatrozes. A névoa matinal encadeia-lhes os olhos, a chuva conspurca-lhes os dias, o vento despenteia-lhes os cabelos que camuflam a imbecilidade interior. Mas eu, para onde vou? Desatino. O meu quotidiano é um desalinho solitário, são notas dissonantes que desafinam esta orquestra de acordes elementares, de partituras rígidas, orquestradas por vis maestros, bafientos agiotas que, inscientes da música, dissimulam playbacks engendrados por pautas gastas, paradigmáticas da audição inepta da plateia. Definho nas mentes destes idiotas que me rodeiam, regrido. Tirem-me deste filme! Se não é filme – dispenso conhecer o género –, submetam-me a uma regressão e mandem-me para o período romano, atirem-me para a arena dos leões. Assim, sentiria a voracidade dos animais, assertiva, em vez de ver dissimuladas, feras cobardes que me querem chupar o âmago do meu ser, por ser quem sou. Assim, seria motivo de júbilo de uma multidão apoteótica, ávida da carnificina boçal que teima em indissociar-se das essências das gentes, as quais, eufemisticamente designamos de humanas.
Rasguem a fronteira deste abismo que nos distancia milhas de quilómetros-luz, ergam-se barreiras que separem este céu do inferno e deixem a luta continuar, de batalha em batalha, com sucedâneas feridas saradas, rejuvenescedoras da minha luta, que, perseverante, de derrota em derrota, chegará até à vitória final. E termino como nos contos infantis, com uma moral da história: nunca subestimem os derrotados... aparentes.

10 Comments:

At 6:20 da tarde, Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Olá Duarte

Fiquei maravilhada com a leitura deste teu texto!

"Épica Desventura"

Sinto em cada palavra tua, a "revolta do que se vive, mas que não se GRITA"!!!!

Um beijo grande

 
At 10:33 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Olá Duarte,
Partilho inteiramente consigo essa perspectiva. Todavia, o meu grito ecoa mais baixo do que o seu. Talvez porque as minhas forças vão sendo infectadas pelo vírus de uma sombra de conformismo, de adiar decisões …sei lá! Sinto tantas vezes, principalmente na minha profissão, o toque corrosivo da injustiça, que abandonei o sonho da magistratura! Passei tantas noites perdidas ao encontro da sabedoria, da palavra justa, tantos sacrifícios pessoais vividos, para hoje me sentir cada vez mais espartilhada pela profissão de professo com tanto amor!
Incoerência? Inconformismo calado? Sei lá Duarte… sei lá!
A verdade é que cada vez mais definho perante o amor da minha vida: o Direito. E já lendo os jornais ficamos agoniados…imagine nós que ali estamos dentro a ver aquilo tudo “ao vivo e a cores”. Estou como o Duarte diz: tirem-me deste filme! Antes Ré de uma verdade do que Autora de uma mentira!
Um dia …

Mais uma vez, Duarte, a palavra na sua excelência.
Beijinhos e bem haja!

 
At 1:35 da manhã, Blogger DT said...

Amigo Duarte

Não sei que premissas te levaram a redigir este texto mas é bem patente a revolta que te povoa o ser.
Mas mais uma vez, está muito bem escrito.
Abraço

 
At 10:02 da manhã, Blogger clarinda said...

Céus, Duarte!, acabei de ler uma ode ao jeito de Álvaro de Campos!

Acho muito significativa essa expressão 'libertar-me desta liberdade'. Jorge de Sena disse, para comunicar algo parecido, ' justiça justa'.

Ninguém te tira deste filme. És absolutamente necessário para dizeres o que disseste e fazeres a diferença.

Um beijinho

 
At 11:12 da manhã, Blogger musalia said...

perante tanta revolta, não consigo dizer nada. apenas ler.
beijos.

 
At 12:32 da manhã, Blogger Eli said...

Custou-me a ler este texto... o meu vocabulário tem que ser necessariamente alargado!
:)

 
At 1:37 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Duarte
sempre que posso venho aqui ler os seus escritos que são de uma intensidade...
Identifico-me com os que navegam nesse mar contra a corrente,e contra o vento dominante. É necessário apenas que arranjemos as cartas e o astrolábio de bem navegar contra a corrente!
Nem sempre os vencidos ficam por baixo da roda da vida. Como tudo, é até um dia...
Obrigada pela sua mestria não apenas das palavras, mas, sobretudo pela perspectiva que lhes consegue imprimir.
Um beijo

 
At 3:28 da tarde, Blogger A. Narciso said...

A revolta quando bem trabalhada e canalizada pode levar à consturção de coisas bonitas, à mudança efectiva do ser e do que o rodeia. Força nisso Duarte.
Abraço

 
At 5:08 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Querido Duarte,

Como eu te compreendo... Li o teu texto e identifiquei-me com cada uma das tuas palavras.
Por vezes sinto a alma surrada por essa torrente contra a qual procuro lutar... não é fácil... Junto a minha voz à tua nessa busca da força que nos faz acreditar que vale a pena não seguir a corrente.

Um beijo,
*** ****

 
At 7:52 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Duarte,
Estou com saudades suas!
Apareça, meu amigo!
Beijinhos.

 

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