terça-feira, novembro 08, 2005

Era uma vez...

Eram horas vazias de uma noite calma, onde a vida repousava, permitindo o merecido descanso dos laboriosos, enquanto os pérfidos aproveitavam a penumbra das trevas, por ela se aventurando. Ali, na frescura húmida da rua, os musgos, na sua acção, deterioram e ornamentam de verde tapetes sedosos nas fissuras do desgaste do tempo. A quietude da cidade abafava o eco buliçoso do dia anterior. Eram horas da madrugada de uma noite amena de Primavera, entrecortada por uma brisa fresca com aroma marinho. Lá no alto, a Lua estava em quarto minguante, e na cidade, só as luzes foscas dos candeeiros competiam com o negrume da noite, em solidariedade para com as poucas estrelas que cintilavam naquele céu enevoado. A cidade, pigmentada de luzes ténues, era refrescada por uma brisa ligeira e o perigo que a rondava, malfadadas vezes vinha do mar e não da serra imponente e misteriosa. Era aquele mar que acariciava a baía que muitas vezes permitia o saque, a insidiosa ira de tiranos e os ataques cheios de voracidade dos larápios dos oceanos.
Subitamente, quebrando a harmonia estática da cidade àquelas horas, irromperam quatro vultos na escuridão. Pelas ruelas e becos mais escuros seguiram caminho, evitando a luz e deslocando-se em passos ágeis, leves e cautos. À frente, pela postura, seguia o suposto líder que espreitava e, após tomar os zelos recomendados, ia dando indicações aos restantes para avançarem. Percorreram ruas desertas, recolheram-se nas reentrâncias de portas orladas por rochas negras de porosidade esmiuçada. Mais adiante, esconderam-se à espreita e pelo andar decidido, aparentavam conhecer muito bem o seu fito. Subiram algumas artérias da cidade e de revés de um candeeiro, viram-se de relance as suas expressões: as suas fisionomias eram rudes, os seus cabelos grisalhos e em desalinho; os seus trajes encardidos coadunavam-se com aquela tez repisada pelos raios solares. Usavam botas negras, calças largas de cinto espampanante e camisa clara, aberta até quase à barriga, desvelando o peito bronzeado de onde pendia um amuleto, em forma de concha, atado por um fio de cabedal. Os seus braços eram robustos e nos seus físicos definiam-se traços másculos e viris. (...)

5 Comments:

At 11:01 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Duarte,

Admiro a tua versatilidade e domínio da palavra em tão diversas modalidades da escrita.
Parabéns pela qualidade da narrativa bem patente neste excerto.

Um beijo,
*** ****

 
At 11:20 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Duarte!... estava com saudades suas!
Espero que este maravilhoso texto seja um pequeno excerto de um livro seu.
Já o mencionei no meu blog um texto seu daqui do “Desfiladeiro” e disse: quando o Duarte publicar um livro, eu nem que tenha de ir à Madeira de propósito para o conhecer pessoalmente e lhe pedir um autógrafo. Juro!
Admiro, como sabe, a sua escrita e acho que Portugal está a necessitar de si para ocupar o merecido lugar de destaque na cultura portuguesa. A língua portuguesa precisa de muitos “Duartes” para sairmos da apneia cultural em que testamos votados.
Gostei de sentir a noite nas suas palavras. Fica diferente, ainda que com um laço de marcada suspeita.
Mais uma vez excelente!
Beijinhos!

 
At 5:11 da tarde, Blogger Madeira Inside said...

Olá Duarte!
Que surpresa agradável!!
Gosto tanto do que escreves, mesmo!!
E nessas horas vazias, reflectimos sobre mil e uma coisas!!
Belíssimo!

Um grande beijinho para ti!
:)

 
At 9:55 da tarde, Blogger luísa said...

Olá Duarte

Não podes fazer isto! Acabar assim, com um (...) no final! Queremos o resto! Onde está??

beijinhos

Luísa

 
At 3:10 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Um pouco atrasada, mas aqui estou a ler e gostar vou agora passar para a 2ª. parte.

 

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