quinta-feira, novembro 10, 2005

Era uma vez...(continuação)

(...)Todos eles tinham aparência estrangeira e os seus movimentos esguios, ágeis, pressagiavam o domínio da velhacaria.
Desceram pelo logradouro de uma casa colonial e debaixo de uma latada de videira, ciciaram em grupo. Os seus murmúrios eram ininteligíveis. Aproximaram-se de uma porta larga de aparência rústica e colocaram um tufo de pano sobre a fechadura, enquanto com a mão, um deles premia uma espécie de alavanca coberta pelo tecido que deixava ressoar apenas um frémito surdo. Passado pouco tempo, ouviu-se o estalido na porta. Fez-se silêncio e as quatro silhuetas resguardaram-se à cata de sinais de alerta. A porta abriu-se e com o auxílio de fósforos localizaram uma vela, acendendo-a após terem fechado bem a porta. Encontravam-se numa adega vasta, ladeada de ambos os lados por pipas, sobre uma laje aflorada por pequenos seixos redondos de basalto, luzidios nas zonas de passagem. Estavam dispostos ordenadamente e perdiam-se na vastidão daquela galeria, formando uma calçada uniforme de pedrinhas plantadas de forma minuciosa. No cimo dispunham-se, sobre uma prateleira grossa e bolorenta, garrafas deitadas, formando uma garrafeira extensa de perder de vista, iluminada à luz pálida de uma vela. O homem de aparência mais grosseira não resistiu ao elixir que ali abundava e bebeu uns valentes tragos do vinho de uma das pipas. Foi severamente admoestado pelo líder que, murmurando, de olhar irredutível e expressão diligente, recolheu algumas garrafas para o interior do seu saco de pele, seguido pelos restantes. Volvidos alguns minutos saíram carregados, com carga que não se afigurava impeditiva de uma fuga efémera e imprevista. O homem rude saiu com uma caixa de garrafas e iniciaram a descida das ruas, chefiados pela atenção redobrada do líder. Seguiram para leste da cidade e sumiram-se no escuro que recolhia o medo e alguns animais noctívagos. Chegaram ao topo da colina que se espraiava para o mar. No começo dos degraus viam-se algumas habitações modestas e quando iniciaram a descida, o cansaço já não permitiu um caminhar hirto e seguro. Subitamente, ouviu-se um ruído áspero de algo a arrastar numa superfície rugosa e o companheiro, já embriagado, tombava desamparado pelos degraus e levava com ele as garrafas que trazia na caixa, provocando um barulho estrépito e metálico, inusitado para aquelas horas que antecediam a alvorada. Irromperam cães a ladrar, e em surdina, algumas vozes assustadas resmungavam e rasgavam a calmaria da noite. Os outros três seguiram e imploraram ao companheiro estouvado que os seguisse, mas este temporizou, pois queria recuperar a caixa e o seu conteúdo. Foi severamente repreendido e aconselhado a deixá-la. Ainda assim, em desespero de causa, apanhou duas garrafas e desceu titubeando rumo ao calhau. Lá fora a embarcação esperava-os e a sensatez aconselhava-os a não provocar mais alarido pelo recurso às armas que traziam no coldre. Correram e ouviram gritos na retaguarda:
– Bandidos! Piratas! Canalhas! Apanhem-nos! – ouviu-se lá do cimo.
Foram perseguidos, mas o manto da noite escondeu-os nas suas penumbras, permitindo que se esquivassem e se perdessem por entre os rochedos. Os perseguidores locais conheciam o “calibre” destas gentes dos mares, e ressabiados, fizeram apenas uma perseguição dissuasora, mas sem afoitamentos que encolerizassem o pêlo daqueles malfeitores.
Empurraram a embarcação ali escondida estrategicamente e, com agilidade, saltaram para o seu interior, enquanto o companheiro, combalido pela queda, correu obstinadamente sobre o calhau agarrado às duas garrafas, procurando salvar o que restava do seu quase fracassado saque. Foi chamado pelos companheiros que, de forma exasperada, suplicaram que saltasse para a água e alcançasse a embarcação. Esta já vagueava nas ondas junto à berma da praia de calhau. Ele atirou-se e tentou nadar com as garrafas, mas quando se elevou para a amurada da embarcação, apenas tinha resgatado uma delas. A outra sumiu-se borda fora. As remadas vigorosas afastaram a lancha e mais adiante, numa baía erma, encontraram o barco tutor que os esperava.(...)

7 Comments:

At 12:16 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Olá amigo Duarte,
Um excerto de uma obra que espero ver publicada em breve?...
Meu amigo, não se esqueça de me avisar se isso acontecer.
Irá haver continuação desta história?... espero que sim, pois estou a ficar muito curiosa e fascinada pela mesma e gostaria de saber o desfecho que lhe deu.
Quer pousando a pena na forma de verso, quer nesta narrativa envolvente, o Duarte tem-nos vindo a habituar à excelência da palavra.
Se insistir é o meu pecado, eu me redimo depois… Onde quer que esteja eu irei estar consigo quando publicar o livro. É uma promessa “de sangue”, pode crer! E do autógrafo não escapa!
Aguardo o desenrolar…
Beijinhos.

 
At 7:41 da manhã, Blogger luadepedra said...

Querido Duarte,

Muitos parabéns, pela forma envolvente e cativante que dás ao corpo do "Era uma vez...".
Sigo atenta á viagem das palavras.

1 Bj*
Luísa

 
At 11:38 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Querido Duarte,

Mais um excerto de inegável qualidade. :)

Um beijo,
*** ****

 
At 3:13 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Fiquei cativa na leitura deste seu "Era uma vez", fico aguardar o próximo desenrolar. Bom trabalho este. Bom fim de semana.

 
At 12:18 da manhã, Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Olá Duarte

Estou a seguir "Era uma vez"... não consegui deixar comentário no outro texto.

A história está riquissima em detalhes - EXCELENTE!

Um beijo

(tenho saudades de te ver no meu "canto" aparece vou gostar muito de te ver por lá :)

 
At 11:38 da tarde, Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Duarte

Obrigda pela tua visita. Adorei "ver-te"

Beijinhos

 
At 5:30 da tarde, Blogger DT said...

Amigo Duarte

Estarei na presença dum futuro livro de contos?
Espero que sim!
Abraço

 

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