quarta-feira, novembro 16, 2005

Era uma vez...(segunda continuação)

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Passados 177 anos -Ano de 1961

Era uma manhã de Primavera, uma como muitas outras em que o Sol iluminava as encostas. À medida que os seus raios se erguiam no horizonte, a luz ataviava os vales de cor e as zonas mais recônditas daquela montanha que aflorava ali no oceano, como que fazendo renascê-las das trevas. Junto ao litoral, a cidade era invadida por gentes de todos os quadrantes da ilha. Os mais janotas cirandavam emproados, pavoneando-se e agrupando-se em conversas banais. Os outros, de indumentária mais indigente, seguiam carregados. Vinham exaustos e traziam mercadorias, caixas de hortaliças, verduras e todo o género de produtos extraídos do suor da vida rural. Eram desprezados pelos outros e, timidamente, mudavam de lado do passeio, evitando mais constrangimentos.
O João era um jovem de 12 anos. Miúdo trigueiro, de olhar vivo, magro, cabelo ondulado escuro e rebelde na orientação. Vivia com os pais num flanco da baía do Funchal, numa casa entre tantas outras, com um pequeno logradouro e um exíguo jardim. Muitas delas eram ensombradas pela frescura das vinhas que formavam latadas sobre os quintais, comprazendo de frescura aqueles recantos no período estival. O João era um miúdo traquinas, irrequieto, franzino, mas muito dócil e sensível. Adorava o mar e sempre que os pais lhe davam um pouco mais de rédea, era encontrado com outros garotos no calhau. Só que a reputação de "miúdo-do-calhau" não era abonatória para ele, muito menos para o bom nome da família. O pai, homem honrado, era um funcionário respeitado dos correios locais. Adorava o filho e augurava-lhe um futuro risonho. O João era voluntarioso, excessivamente curioso, mas a sua rebeldia era invariavelmente interrompida por actos de humanismo tão comoventes, que só os mais chegados podiam testemunhar. Os avós, estes, viviam no campo, não muito distantes da cidade. Não raras vezes, era ver o João quebrar a monotonia e meter férias do seu calhau, para revisitar a frescura verdejante e sentir a dureza do campo, bem como a agrura que o relevo da ilha configurava na vida daqueles que da agricultura precisavam subsistir.
O empenho da população rural dotava a paisagem de verdadeiros mosaicos verdes, de diferentes estruturas e tonalidades, consoante a cultura, a época do ano e a própria luminosidade do dia. Naquela encosta íngreme, dominava a cultura da videira. Ali produzia-se o famoso vinho madeira e eram aquelas videiras que matizavam predominantemente a paisagem, pelo sucedâneo lento do passar das estações. Os vinhedos que compunham aqueles socalcos, eram conduzidos em latadas que, com sapiência e argúcia, os homens do campo cuidavam, podavam, limpavam e reaproveitavam durante a dormência da vinha, cultivando culturas de Inverno, de forma a rentabilizarem a terra. Este processo permitia igualmente uma melhor drenagem do solo, conjugado a uma fertilização assaz do mesmo.
O sol resplendoroso de uma manhã de sábado levou o João até ao calhau que distava cinco minutos de casa, no seu passo garoto. Via alguns barcos a pontuarem a baía cada vez que vinha à superfície respirar após um mergulho. Invariavelmente trazia algumas lapas. Enquanto as capturava, o António e o Rui, que o acompanhavam, faziam um petisco. Eram amigos que se juntavam na confluência daquele mar, com aquele litoral recortado, inserido na formosa baía. Adoravam capturar bichos do mar, e no caso das lapas, devoravam-nas vivas, usando a concha da própria lapa para retirar a carne suculenta da seguinte e assim sucessivamente. Comiam igualmente os caranguejos vivos, chupando-lhes as patas. A maré estava baixa, e mal sabia o Sr. Alfredo, pai do João, que o filho já mergulhava, tinha uma apreciável resistência e propensão natural para o mar, fazendo fé na reputação famigerada entre os amigos.
Foi num desses mergulhos que o João retomou à tona e gritou:
– Vi um polvo! – disse – Meteu-se entre as rochas.
– Um polvo? Ena! – respondeu o António.
– Passa o arpão, Rui! – gritou exasperadamente o João.
O arpão chegou às mãos do João que, inspirando forte, voltou a desaparecer no fundo. Passados alguns segundos voltou à superfície e exclamou com desânimo:
– Afastei uma rocha, mas o polvo escapou-se – disse desgostoso. Depois acrescentou:
– Esperem! Vi algo que parece uma garrafa! Uma garrafa diferente!
E erguendo o rabo voltou a sumir-se naquelas águas calmas e cristalinas.
(...)

4 Comments:

At 6:45 da tarde, Blogger DT said...

Amigo Duarte

Agradeço, desde já, as palavras elogiosas.

Quanto à não premiação do teu texto, resta-me deixar-te um novo incentivo. Também eu já concorri a um concurso literário e o resultado foi o mesmo.
Mas não deixei que isso alterasse, nem de perto nem de longe, a minha maneira de escrever, nem tão pouco a vontade. E por mais que qualquer "escritor" como nós acalente o sonho de publicar um dia, escrevemos, acimda de tudo, para nós.

Relembro um texto que li uma vez, que foi dos textos que mais me marcaram e dos mais belos que tive oportunidade de sentir. Entitulava-se "A Lâmpada da Vida". Conheces? :)

Por isso, continua a deixar fluir todo esse mar de basalto que banha o teu íntimo, que nós cá estaremos para te ler. Sempre.

Grande abraço

 
At 9:57 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Querido Duarte,

Concordo com as palavras do Duarte Temtem. :)
Continua a escrever sempre, as tuas palavras são importantes para todos aqueles que te lêem.

Um beijo,
*** ****

 
At 6:55 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Olá Duarte,
Alia com mestria o pormenor, a cor e ainda por cima tem-nos permanentemente presos à história.
Deixa-me envaidecida ser comentadora deste Blog.

Não sabia que tinha concorrido a um concurso literário. O facto de não ter ganho não significa nada mais do que isso mesmo... não ficou em primeiro.. mas para mim, Duarte, você será sempre o primeiro. Não nos interessam saberes "congelados", espartados... interessa-nos o sumo das palavras e que aqui corre a jorros. E com uma qualidade excepcional. Talvez tenha sido esse o grande receio dos "escolhedores" desse prémio... e mais não digo senão vou estragar os comentários... enfim!

Duarte, por favor, continue a escrever porque a língua portuguesa agradece!
Beijinhos

 
At 11:35 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Querido amigo Duarte,
Volto aqui novamente para lhe dizer que já soube que foi este texto que levou ao concurso. Mas tb vim para lhe dizer que, se não fosse incómodo para sí, gostaria de ler o texto na íntegra. Pode ser?
Espero que não leve a mal o meu abuso... mas a verdade é que gosto de o ler.
Beijinhos.

 

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