sábado, maio 21, 2011

Assimetrias

Kiev, Maio de 2009
É importante ter, não importa como nem por que meios. O astuto, recorra a que meios forem, é o que reúne riqueza e ostenta sinais de opulência. Aqui, para uma maioria, importa projectar uma vida de prosperidade, alicerçada em bens materiais que floresçam para o exterior; valores ambientais parecem não fazer parte das preocupações desta gente. Cidadania não é uma idiossincrasia que simbolize modernidade. Acima de tudo é importante ter um bom automóvel, de preferência daqueles altos e robustos, dando direito a galgar os passeios, numa conduta que não é desaprovada pela população em geral. “A culpa é do governo” – dizem – pois deveria criar parques de estacionamento suficientes. À minha insinuação de que esses ricos deveriam ser indivíduos intelectualmente destituídos, tal como revelaram algumas atitudes na estrada, foi repreendida com severidade, apontando aqueles exemplos como modelos a seguir. Num país estruturalmente débil, Kiev certamente contrasta com todo o restante território para onde fica reservada a escória. Aqui avistam-se autênticas bombas da indústria automóvel. Remete-nos para destinos obscenamente ricos ou para locais onde as pessoas pautam a vida pela exibição, onde abundam os paraísos do jogo, as milhentas maneiras de branquear dinheiro de forma quase escancarada, os vícios, a prostituição ou a máfia. As minhas suspeitas tendem para a corrupção. A vilania tende para este comportamento e o reflexo disso são estas exibições deprimentes, ridículas, absurdas, como alguns aceleramentos boçais que algumas bombas automóveis aviltam nas avenidas, para gáudio dos que lhes querem seguir as pisadas. Não respeitam sinais nem regras, amedrontam quem passa, a própria polícia faz tábua rasa a estas infracções, assobiando para o lado para evitar represálias. Mas o ucraniano não é apenas isto. Reina aqui um povo muito afectuoso, generoso e afável. Estes sinais vêm sobretudo de alguma geração mais velha, mas não só. “Portugalia”, na sua pronunciação, desperta interesse, gera simpatia, está conotado com algum exotismo e encanto.
Foto tirada daqui
O alfabeto cirílico torna qualquer compreensão árdua; converte qualquer informação tão criptada que o melhor é simplificar procurando quem nos dê indicações muito simples como se a linha de metro que vamos tomar corresponde à cor vermelha ou à azul. Ali é tudo tão confuso. Poucas coisas são intuitivas, às vezes mais vale seguir, improvisando ou deixando-nos mais susceptíveis ao insólito ou a situações caricatas. Simplificaria deixar-me vogar rio abaixo, no sentido imposto pela corrente, como devem ter feito, vindo de montante, os três irmãos e uma irmã que fundaram Kiev. Eles simbolizam a cidade erguidos numa embarcação que, pelo aspecto, não exibe rudimentos para a navegação, pelo que deve ter deslizado o rio para jusante até ao remanso daquela afortunada margem. Na proa, a irmã liderava a façanha, daí não ser indiferente o carácter feminino desta urbe, recheada de montes e vales, de belo recorte, de linhas finas e delicadas. No seu âmago, são densas as memórias que sussurram a cada passada. Preferi evitar a severidade invernal, mas, se Zeca Afonso, na sua época, visse o fosso que separa os ricos dos pobres, consubstanciado por estas máquinas de vidros fumados, e noutras extravagâncias pouco habituais por terras lusas, cantaria em protesto: “eles comem tudo e não deixam nada”.