terça-feira, fevereiro 07, 2006

Barco à Vela



O frio varria o manto marítimo de tonalidades pardacentas. O mar reprimia as ondas, impotente para fazer espreitar uma vaga no gélido crepúsculo da tarde. A imensidão infinita espraiava-se no horizonte, enquanto a viagem prosseguia calma para o Sul. Para trás ficavam isoladas na memória, as numerosas ilhas da cidade. Baixios e aves marinhas de forte estirpe.
Numa espreitadela distraída, fui enlevado por um anjo luminoso no horizonte. Os raios que sobejavam da tarde iluminavam as velas translúcidas de um barco. Dos mastros pendiam as velas desfraldadas ao vento. Aquela brisa cortante que se detinha na lisura dos panos que, esticados, definiam contornos de um corpo formoso de mulher. O velejar suave estendia um tapete aveludado de mar, por onde a quilha do barco rasgava as centelhas das ondas. O destino? Rumava em direcção ao pólo norte, quiçá às ilhotas que a memória ainda retinha. O chapinhar nas águas cadenciava notas de melodia marítima, tão deliciosas como esta visão graciosa. Procurei estacar no tempo, fazendo perdurar aquele momento, na ânsia de descobrir como aquele incólume veleiro, seguia numa paisagem cinzenta, num cenário sinistro prenunciador de intempéries. Teria o velejador um acordo com os deuses e astros, na rota escolhida para esta passagem? Ou conheceria a linguagem das aves marinhas, mensageiras dos mares?
Na reflexão deste instante, lembrei-me das portas que se abrem na nossa vida, em que o vento sopra na direcção do sucesso, mas a boçalidade do nosso calculismo, egoísta e avarento, renega a origem inata do que nós somos, deixando as nossas velas amarradas, intrincadas às futilidades mundanas.
À medida que o barco se sumia na paisagem, contemplei-o estarrecido, onde reverberavam as velas que ataviavam o horizonte, de um dourado de paz, que refulgia de forma intensa neste bucólico ocaso.
Arribei as velas ao vento e, neste ensinamento sapiente, segui as coordenadas que me foram confiadas pelo anjo, seguro de uma caminhada no mar que, calmo ou revolto, sabia não interferir mais na minha cruzada.

Foto: Duarte Olim

8 Comments:

At 5:26 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Amiguinho João... que bom voltar a "ler.te" ... andavas ausente deste cantinho prazeroso que é a tua escrita... Faço alusão ao: " Seguro de uma caminhada no mar que, calmo ou revolto sabia não interferir na minha cruzada" . A vida é isto mesmo e existem momentos em que o horizonte tem que ser mais auspicioso que as contrariedades...

Que bom é ler.te

Di...

 
At 10:45 da tarde, Blogger Memória transparente said...

"...Numa espreitadela distraída, fui enlevado por um anjo luminoso no horizonte. Os raios que sobejavam da tarde iluminavam as velas translúcidas de um barco..."

Gostei.
Beijinhos.

 
At 2:41 da manhã, Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Olá Duarte

Já estava com saudades :)

A tua arte para a narrativa é pura emoção - é genuína - e a tua escrita se torna um verdadeiro poema.

(trata-me por tu, por favor)!

Beijinhos

 
At 3:36 da tarde, Blogger Madeira Inside said...

Olá Duarte!!
Já faz algum tempito, hein??
Heheh!!
Estudar, é o que tá a dar, para não dizer "tem de ser!".
Bem, como sempre é bom regressar e ler-te!! Mesmo bom!! Gostei !!

Beijinhos
:)

 
At 7:44 da tarde, Blogger clarinda said...

Duarte,

A foto é extraordinária parece irreal. o teu texto descreve a foto e dá-lhe um sentido. A comparação entre a essência do ser humano e a pequena realidade interrompe o sonho, mas há um anjo. Eu acredito em anjos!No Douro há dois, um em cada margem, mas estão presos em estátuas.


Um beijinho

 
At 6:21 da tarde, Blogger lena said...

Duarte, a foto e linda!

foi muito bom ler-te hoje, o frio vem, toca-nos mas o mar consegue aquecer-me e embalar-me no canto das suas ondas

foi lindo viajar nas tuas palavras e senti-las com emoção

beijinhos meus

lena

 
At 7:44 da tarde, Blogger Caracolinha said...

E assim se contrói um rumo cheio de certezas ... parabéns pela assertividade do texto.

Beijoca encaracolada :)

 
At 3:46 da tarde, Anonymous Anónimo said...

...entre a prosa e a poesia debato-me num dilema...
Está soberbo, sobretudo o prazer de ler nas entrelinhas.

 

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