segunda-feira, dezembro 18, 2006

Alvorada no Crepúsculo

No muro que ladeava o Caminho do Massapêz, de basaltos sobrepostos, embelezado por um bardo de dedaleira, de graciosas flores cor-de-rosa, sentava-se a Mariquinhas. Assistia ao correr dos dias, sempre vestida de negro, por luto aos seus que perdera, por luto à vida que desfiava impiedosa. O crepúsculo encobria de sombras funestas, recantos e poios, traseiras e veredas, ramos e arbustos. Ali no caminho, um candeeiro iluminava o folguedo das crianças, nas brincadeiras derradeiras daquela quinta-feira primaveril. A velha observa-os, com as mãos grampadas no seu inseparável bordão de cana-vieira, acetinado pelo uso. As suas mãos eram cepos secos e rugosos que pareciam a continuidade de uma trepadeira vetusta de jardim. A anciã seguia até casa, descendo uns degraus matreiros, mas o auxílio providencial do amparo, fazia-a passar no teste com distinção. Mastigava a decrepitude num menear de maxilares desprovidos de dentição, em movimentos maquinais que lhe encarquilhavam ainda mais as rugas.
Enquanto isso, de roda da luz bruxuleante que reluzia daquele poste, poupada pelas pedradas de alguns rebeldes da escola, brincava a rapaziada. Cientes dos preceitos dos adultos, faziam-no antes de serem convocados, a contra-gosto, pelos seus tutores, indicando-lhes o leito. Em jogos das escondidas, serviam as cercanias da casa da Mariquinhas, bem como o palheiro e anexos, em seus antros difusos. Os canaviais com as suas ásperas canas-de-açúcar, uma parreira de vinha mais levantada, uma latada ou dentro de um bidão para ali abandonado, todos eram esconderijos admissíveis. Via-se somente por entre fogachos de luz do candeeiro do caminho, como se fragmentos cintilantes se difundissem pelas imediações e permitissem estes jogos na semi-obscuridade, mais apetecível pelo apetecível insólito proporcionado pelo escuro e suas sombras. Eram penumbras que, de assustadores mitos e presságios, evolavam o medo e apelavam às descobertas pueris do desejo.
Naquele dia reinava a calma, até um zumbido penetrante e alteroso fazer umas investidas tangentes em redor dos circunstantes. No bardo da dedaleira, as flores iam sendo violadas por um agulhão comprido, e os borboletões, voando em grupos, faziam o seu perscrutar nocturno, para gáudio da rapaziada que os acompanhavam à distância. Ao zunido da sua aproximação, zarpavam com medo. O voo nocturno parecia desgovernado, visando apenas o néctar da dedaleira, assim designada mercê da forma das flores que permitia um atavio aos dedos, antecipando o Entrudo. Além disso, corria o mito de que certos insectos possuíam um ferrão proporcional ao seu tamanho, daí o cauto.(...)