domingo, abril 24, 2011

No Trilho do Preconceito


Foto tirada daqui
No decurso das minhas últimas incursões europeias, das quais, nalguns casos em visita a países ricos cuja observação mais atenta permite ter uma noção de como as sociedades destes lugares evoluem e progridem, tenho identificado pormenores comportamentais interessantes, mas sobretudo mudanças nas concepções sociais que se manifestam de diversas formas e que passo a realçar: começaria pela constatação de que, em países desenvolvidos, nomeadamente do centro e norte da Europa, ter um carro não é prioridade. Privilegia-se o transporte público e nos casos em que essa possibilidade, por razões orográficas, o permite, privilegia-se a utilização da bicicleta. Por esta tendência bem definida, costumo afirmar que as pessoas com pretensão sôfrega de ter automóveis normalmente são habitantes de países em vias de desenvolvimento, na maioria meridionais. Nem sempre os culpados são os cidadãos, mas as políticas que estimulam invariavelmente o uso do automóvel. Noto ainda que, ao contrário do sul de Itália, da Rússia, da Ucrânia, de Portugal e de poucos mais, é visível o abandono, por parte das mulheres, da utilização do sapato de salto alto. Errando pelas ruas dessas cidades, estranha-se a ausência do tic-tac sonoro dos saltos, aquele que retine nas cidades lusas, embora as raparigas e mulheres que os abandonaram não deixem de vestir com elegância, com charme, mas reproduzido em vestimentas mais jovens, práticas, desportivas e alegres. Calçam normalmente sapatos confortáveis ou sapatilhas. E se há muito já me tinha apercebido de uma certa desadequação do salto com a juventude, e que o salto alto espelha ainda a submissão da mulher aos preconceitos, por ser anacrónico e prestar vassalagem ao homem, atitude que supostamente a revolução social de 1968 já deveria ter exorcizado, reflecte ainda o quão reféns são as suas utilizadoras da imagem. São reféns dos ditames de uma ditadura feroz que as condiciona e quiçá, lhes coarctam a liberdade. E retomando Barcelona, a sua modernidade revelou o que já esperava: só residualmente se observam algumas mulheres com semelhante tacão sob o calcanhar. Atrever-me-ia a conotar a inteligência de quem utiliza salto, em contraponto com as outras, mas para não ferir susceptibilidades, prefiro não desenvolver mais. É que a liberdade de escolha é sagrada e ser-se tolerante é outro sinal de modernidade. No entanto, não podia deixar de notar que existem pormenores curiosos que podiam fazer certos psicanalistas deitar no divã certos grupos para um melhor diagnóstico deste foro. Por fim, quanto maior a importância que se dá aos títulos, mais atrasado e provinciano é o país. Quando exponho que, no meu país, se tratam por Senhor Engenheiro e Senhora Engenheira, Senhor Doutor e Senhora Doutora, como se essas pessoas a quem chamamos dessa maneira fossem assim baptizadas, todos se pasmam. Para acentuar o ridículo da situação, esta denominação extravasa os muros do espaço laboral, estendendo-se no meio social, fim-de-semana fora, etc. Para eles, europeus desenvolvidos, doutores são os médicos, ponto final! Depois aquele tratamento por “você” é tão impessoal e frio… Para não falar dos que, ridiculamente se pavoneiam por ostentar uma série de apelidos emparelhados no nome. Na maioria dos países desenvolvidos, espantam-se que eu apresente quatro nomes, os apelidos de família e os outros. Agora imagine-se seis, sete, oito e mais… coitados dos que, a este vexame se expõem, por capricho dos progenitores.
Além de comportamentos ridículos e desconchavados, é neste país, na posse de qualquer poder menor, que os medíocres se agigantam e exibem os galões ou os pobres de espírito se assenhoreiam da soberba, os tais que, nem tiveram capacidade de entender o que representa o civismo, caminhando emproados, mas que se esquecem de saudar o próximo, que sentem que um sorriso para um destituído ou idoso é uma humilhação, que olham com desdém e menosprezo para os seus. Há ainda a segregação consoante a indumentária, certos espaços estão devotos a certas classes sociais e há uma clara diferenciação no trato, consoante o estatuto social. É neste país que se vive uma democracia bacoca, onde a imagem e o banal canudo, bem como as marcas, auguram um certo nivelamento na pirâmide social. Tudo isto é a antítese da sociedade exemplar, e é nesse paradigma disparatado que se insiste em continuar a viver, até que, tardiamente, nos apercebamos de quão ridículos somos. É nesta contradição humana que muitos continuam a vociferar por valores que os seus comportamentos dúbios contradizem. No meio desta chusma de “importantes”, felizmente destacam-se os que o são realmente, de forma natural e que, por coincidência ou não, são humildes no trato e afáveis nos gestos, porém, desconhecidos da maioria.


A inumanidade inflingida aos outros destrói a nossa própria humanidade - Immanuel Kant

sábado, abril 23, 2011

Ergonomia Urbana

Aprendi que as cidades são, como o nome indica, para os cidadãos. Que política deriva da palavra grega “polis” que significa cidade, entendida como comunidade organizada. Por conseguinte, política é a ciência que deve estar na génese das cidades e da sua organização. Serve este prelúdio para possibilitar uma contextualização do que é a cidade de Barcelona de acordo com estes conceitos. A excelência de uma cidade, como a que tive a felicidade de visitar, deve-se, em grande parte à generosidade do seu espaço público. E se as cidades são corpos dinâmicos que se moldam às diferentes influências, à evolução dos seus cidadãos, ao seu crescimento e sempre sujeita ao aperfeiçoamento tecnológico e edificação de novas infra-estruturas, a qualidade de vida de uma metrópole desta envergadura deve-se à qualidade e, sobretudo, amplitude do seu espaço público, sendo servido por um sistema de mobilidade moderno e eficiente. A abundância de jardins, de parques, a existência uma rede de ciclovias bem delineada que estimula os seus habitantes a utilizar este meio como forma de mobilidade, é notável. Criar uma rede de pontos providos de bicicletas públicas, acessíveis aos seus cidadãos, com preços simbólicos que permitam que uma adesão a este meio seja fácil e possibilite, quase sem custos, que as mesmas sejam utilizadas para chegar ao trabalho e dele regressar, permitindo, noutros casos, que se aceda à estação de metro mais próximo, facilitando o regresso, retira tráfego automóvel, ruído, emissões e poluição sonora e do ar, permitindo ainda poupanças de grande monta no investimento rodoviário. Depois há uma poupança inestimável na saúde pública pelo incentivo dos cidadãos à prática de exercício físico. Bem ao contrário do que se vai fazendo nas nossas urbes, dando prioridade aos automóveis, justificando com falácias que, vias de comunicação são para os cidadãos e que valorizam a sua qualidade de vida. Nada mais errado! Depois, além destas condições, a proximidade do mar, da costa, pensada, não apenas para as marinas e para o porto, mas também para a população, mantendo praias livres, abertas, amplas, a paredes-meias com a cidade, é admirável. Por todas estas razões, Barcelona é um encanto, tem um espaço público que lhe confere um lugar entre as cidades mais bem delineadas que conheci. Não admira pois, que cidadãos a viverem numa cidade destas características, com esta ergonomia, se sintam motivados a sair de casa, a praticar actividades desportivas e a privilegiar o convívio social. A excelência na mobilidade possibilita o deleite com a oferta cultural e, por sua vez, enriquece e dota os seus habitantes de ferramentas para fazer face a este mundo global cada vez mais competitivo e dualista.
Por fim, não podia deixar passar despercebido o comércio tradicional que, nesta cidade se adaptou aos tempos. É moderno, ainda promove a interacção entre o comerciante e o cliente, promovendo empatias sociais que tornam o quotidiano mais amigável e cada lojinha é um mini-museu, pensado ao pormenor, um regalo que muitas vezes nos deixa especados à entrada, sejam antiquários, galerias e nalguns casos bares decorados com arte, reproduzida em candeeiros, vitrais, pinturas e outras peças de arte de embevecer. Não obstante tudo o que uma cidade oferece de interesse, a montanha mais alta, sobranceira a Barcelona, denominada de Tibidabo, fez-me avistar outros cenários bucólicos, deles sendo refrescado por uma aragem campestre. É no encalço desses lugares que me movo, sei que é neles que a poesia encontra a sua cadência, longe da pressa assustada das urbes, que nessa agitação, parecem querer antecipar o fim.

terça-feira, abril 12, 2011

Afortunada

Quando culturalmente a nossa génese nos compagina com o fado, com a poesia que a lonjura do horizonte faz esquadrinhar na alma, acenando-nos um porvir mais afortunado que toma a feição nostálgica e faz do sentimento saudade a nossa identidade, não é fácil aceitar a mudança ou agir de acordo com outros cânones mais ledos. Incorporando este perfil, não admira nada que, por colisão entre antípodas, no encontro de massas de humor distintas, a chegada a Barcelona tenha sido molhada, debaixo de uma copiosa chuva. Só com o decurso dos dias me apercebi do porquê desta recepção. Uma cidade tão buliçosa, dinâmica, trajando de júbilo, não podia interagir bem com o fado, com uma poesia de travo melancólico. Admiti que a cidade da arte, do design, tenha esboçado estas feições para moderar o meu entusiasmo, para que, imersa nesta aura pardacenta, pudesse camuflar a sua verdadeira essência, a prosperidade que o povo catalão goza e irradia sem peias. Mas se Barcelona chorou na minha estada, esqueceu-se a metrópole que, no molhado, as cores polarizam e irradiam mais beleza e cor. Estas condições dissuadem ainda as pessoas de sair, reduzindo o fluxo de massas que é comum aqui, desde que, após os jogos olímpicos de 1992, o mundo descobriu esta urbe à beira do mediterrâneo plantada. Todavia, a qualidade de vida, mesmo sob condições desfavoráveis, não quebrou o enlevo e não impediu o formigar de pessoas na rua, uma apetência invulgar pela vida social, aquela que mais contribui para o desenvolvimento do indivíduo e lhe assegura maior felicidade, tese amplamente defendida por filósofos. Nós, por cá, não o percebemos, preferimos a companhia da televisão. Percebi que Barcelona quis que não fosse exacerbado o meu enleio com esta qualidade de tudo, mas também as entidades assim, sábias, se enganam, e o copioso aguaceiro não escondeu a simpatia catalã, a hospitalidade, o bem receber, a bonomia das suas gentes, a arte… a arte que, sob um guarda-chuva e pedindo um olhar mais atento para baixo, para evitar poças e charcos, quase fez esquecer a observação que os detalhes pedem. Aos poucos fui interiorizando a atmosfera deste lugar, o privilégio dos seus cidadãos, ou simplesmente uma certa e indisfarçável soberba de quem nasceu nesta região que clama certo tipo de autonomia, que mantém vivo um falajar distinto, que interioriza a vida de uma forma mais impenetrável, contida, mas sempre receptiva ao acolhimento fraterno. Reclama ser capital, mas não sendo do país, é-o da Catalunha.
A cidade tem uma marca profunda, indelevelmente ligada à arte e ao seu mais destacado artista – Gaudi!, mas se a urbe não quis que ficasse estarrecido com o seu encanto, na despedida prodigalizou um dia soalheiro que, em jeito de remissão, me convidava para um regresso. Despedi-me e, à medida que Barcelona se desvanecia no horizonte, as suas memórias foram-se exacerbando no meu interior. A arte que o seu maior génio imprimiu como marca, não causa prejuízo algum à magia que aquela labiríntica cidade velha já antes encerrava, e graças à chuva que Barcelona me oferendou, a aversão ao molhado das gentes deixou a descoberto reminiscências da sua rica história e do seu próspero passado. A esta distância reajo com nostalgia às suas memórias, guardo o convite para um regresso, anunciando-o para qualquer dia, quando a sofreguidão por arte me fizer esse chamamento. Até lá, ainda pedalo de bicicleta praia afora, estarrecido nesta urbe de genialidade e, irrefutavelmente, de Gaudi.