quinta-feira, junho 21, 2007

O Engraxador do Mercado (conclusão)



(...) Resolveu aquietar o rapaz contando-lhe mais uma história supersticiosa, descrita como um poder mágico que, se dizia, alguns chapéus de palha teriam, se sujeitos a determinado ritual. Tudo isto surgiu no seguimento de umas dissertações sobre a profissão do pai. A Dona Rosa discorreu a sua narrativa, fazendo crer que certas almas professavam que, caso se dependurasse um chapéu de palha no galho mais alto de uma figueira, durante a noite de S. João, quem voltasse a usá-lo nessa data, nos anos subsequentes, ficaria temporariamente invisível. Segundo a versão da Dona Rosa, o encanto durava apenas quinze minutos, desfazendo-se gradualmente, começando pelo chapéu e terminando no corpo do enfeitiçado. Caso tirasse o chapéu, a magia perdia-se num relampejo. Além disso, o chapéu devia ficar bem firmado na cabeça. A senhora fitou o Serafim, enquanto este a escutava mais atentamente que o habitual. O rapaz perguntou: “quando é o dia de São João?”. D. Rosa rodou a cara e relanceou o calendário com uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. Volvidos instantes, disse: “depois de amanhã!”. “Se quiseres tentar, posso oferecer-te um chapéu desses” – disse apontando para uns chapéus pendurados no bengaleiro. Era na verdade uma crença associada a magias negras ou rituais de bruxaria.
No dia seguinte, o jovem engraxador ergueu-se mais cedo, preparou a caixa negra de pedal e dirigiu-se para o Largo onde deveria dar mais umas engraxadelas.
Na véspera de São João, não se livrou de uma valente reprimenda por chegar a casa após as vinte e três horas. De nada serviu a desfaçatez de evasivas de vária ordem. Para agravar a situação, trazia a roupa amarfanhada e vinha sujo e desarranjado. O pai ainda pensou que o rapaz se tivesse envolvido em contendas, mas não eram visíveis sinais de tumefacções ou nódoas negras, pelo que, ou o rapaz não tinha dado qualquer chance, ou outra desdita o tinha deixado naquele estado. Jantou indisposto, ouvindo o pai a debitar imprecações. Mal terminou, recolheu-se no quarto. Dormia num cubículo exíguo, sobre um beliche modesto, juntamente com o Florentino, o irmão mais novo. Tinham um pequeno rádio que os acompanhava até cerrarem os olhos.
Com a cobertura influente da D. Rosa, o Serafim conseguiu reunir alguns peixes miúdos que, por não reunirem os requisitos mínimos para a venda, eram destinados a moagem que seria utilizada na actividade pesqueira como engodo. De quando em vez, juntava um saco desses peixes e ia até à praia de S. Tiago. Os seus encontros com o lobo-marinho tornaram-se mais frequentes e culminaram com o arrojo de umas tímidas festinhas no dorso do animal. Além disso, presenteava a foca com aqueles peixes que levava. O lobo-marinho devorava-os com uma vontade sôfrega, e no final, a saciedade daquela carência era retribuída por umas divertidas acrobacias no fundo. O rapaz rejubilava por contribuir para alimentar aquela cria. A plenitude da interacção entre o animal e o homem, levou o Serafim mais amiúde ao mar. Nos dias que não o encontrava, entristecia. A saudade consumia-o. Tal como aquela que sentiu no fado que ecoava do Marcelino, Pão e Vinho, aquela casa simpática que trazia as recordações do peito, nos acordes plangentes da guitarra, na voz magoada da fadista, que evocara no Serafim, um chamamento nostálgico à mãe que já não tinha.
Sucederam-se mais alguns encontros do lobo com o Serafim. Normalmente ocorriam pela manhã, aos fins-de-semana. Cedinho demais para que o segredo pudesse extravasar as muralhas do Forte de S. Tiago. Além disso, os encontros eram marcados na profundidade, embora o animal precisasse de ir à superfície respirar. A D. Rosa era a confidente do rapaz, única depositária dos seus segredos. Confidências difíceis de velar na zona velha, na Rua Santa Maria e nas que se lhe cruzavam, propícias à proximidade, à promiscuidade e a outras ligações indizíveis. As fachadas opostas da Santa Maria opunham-se e atraíam-se. Os seixos redondos do empedrado da rua dispunham-se em fiadas, simetricamente orientadas, formando um mosaico estreito que tornava as portas todas próximas, privilegiando a partilha, mas também as desavenças. Os vizinhos tocavam-se, cheiravam-se… a mistura de cheiros dos cozinhados, nas horas de refeições, não permitia grande privacidade, revelando a escolha da receita, o peixe frito, o guisado de carne, …enfim, as posses, a condição social.
Transcorrido um ano, o Serafim lutava arduamente contra a crise da profissão. Esta começava a revelar-se uma actividade rara, pouco rentável, mais condizente com um cartaz turístico, foco das objectivas dos turistas, do que alvo dos desmazelados do calçado. Por outro lado, o comércio oferecia uma gama de produtos para que as gentes tratassem da limpeza e asseio do calçado, e os hotéis mais modernos, ofereciam escovas e graxas para limpar e lustrar os sapatos. Começou a sobrar tempo ao Serafim que o aproveitava para ir ao mar. Era compensado pelos encontros com o lobo-marinho.
No dia de São João, foi calcorreando a zona velha, subindo até ao Largo do Socorro. Ouviu brados azoados de pescadores, oriundos da zona da Barreirinha. Abeirando-se na amurada, espreitou do cimo. Aparentemente tudo parecia normal. De chofre, das redes lançadas pelos pescadores, viu uma saliência arredondada e escura a emergir, e dois olhos negros que voltavam a desaparecer no fundo… Atónito, nem quis acreditar no que avistou. O lobo-marinho estava encurralado nas redes dos pescadores. Desorientado, nem teve tempo para reflectir. Foi atingido por um lampejo que lhe anunciou o dia. A reacção foi imediata. Correu como uma flecha até casa e regressou com um chapéu de palha sobre a cabeça. Trazia um punhal metido nas calças, arma que o pai escondia na despensa. Num piscar de olhos desceu o lanço de escadas que dava acesso à plataforma que ligava ao pontão e observou expectante, transpirando raiva. Perdido, não sabia como agir, que missão o mobilizava… precisava de fazer algo. O lobo-marinho estava cercado pelas redes que o iam estrangulando, cingindo o cerco. Os pescadores vociferavam imprecações, davam ordens, mas não disfarçavam o regozijo por mais esta caçada… Volvidos poucos instantes, cinco homens apeados no pontão, segurando cada um, uma ponta da rede, começavam a puxá-la. Nas têmporas do Serafim, o sangue entrava numa febril efervescência. Berrou: “PAREM!!” Olharam na sua direcção, mas, estranhamente, parecem não terem fixado o olhar na sua presença. Desorientados, miraram para todos os lados, no fito de localizar o autor do brado. Entregue à ousadia da loucura, assim que avistou a corpulenta forma do lobo-marinho a ser içado, tirou o punhal e correu resolutamente; assim que alcançou os homens, com a traineira a poucos metros, desferiu cortes na rede e começou a cortá-la de repelão. Um dos homens, vendo a rede ceder de um dos lados, ralhou com aquele que devia estar a segurá-la: “aguenta bem isso aí!”. Dito isto, do seu lado, a estupefacção atingiu-o… diante de si, a rede parecia desfazer-se por cortes sucessivos. “Estranho! Eram fios de nylon, resistentes…” – pensou um deles. De chofre a malha cedeu e entornou o seu conteúdo. Os homens estavam completamente aturdidos. Encolerizados, visavam-se uns aos outros com calão grosseiro, vociferavam, acusavam-se, enquanto o peixe e o lobo-marinho, caídos ao mar, pisgavam-se para o largo. Um dos pescadores, assarapantado, articulou um comentário face ao que parecia avistar: “olhem lá ao fundo um chapéu de palha a andar no ar sozinho!”. “E não está vento!”, anotou. O líder da horda reprimiu-o esgazeado: “da próxima, se estiveres bêbado nem apareças!”. “Esta agora… ver chapéus de palha, depois de perder o pescado”, balbuciou irritado.
A meio da escadaria, o Serafim controlava a custo a respiração ofegante, descompassada. Olhava, derreado, para o desnorte dos pescadores que se insultavam sem tréguas. Fitou o chapéu que segurava na mão direita e sorriu. Os nervos apoderavam-se ainda dos seus movimentos. Começou a recompor-se, galgando os últimos degraus do lancil de escadas. Estirou-se no Largo do Socorro, espraiando o seu cansaço no mar distante… protegido na rectaguarda, pela igreja do mesmo nome.

Fim

terça-feira, junho 19, 2007

O Engraxador do Mercado (2)


Foto tirada daqui

(...) Ao seu desamparo, valia a benquista Dona Rosa. Aconselhava-o nas vezes que o rapaz ia lá a casa, espreitando pelo postigo que costumava iluminar um dos passatempos em que se entretinha: o bordado. A rádio ia trazendo novas: notícias e músicas; na volta, exorcizava a solidão. A senhora era viúva e vivia sozinha. Era conhecida por contar muitas histórias. Teve apenas um filho que perdera a vida num fatídico acidente na África do Sul, para onde tinha emigrado em busca de melhor sorte, e para escapulir-se à guerra colonial e aos horrores do caudilho da pátria. Volta e meia, o Serafim retribuía a gentileza e bondade da mulher, prostrando-se num canto a ouvir algumas das histórias. Algumas provocavam muito enfado, impacientando-o. Porém, como miúdo obediente, lá se esforçava a ouvir. Enleados por anos de convivência mais próxima, o rapaz sentia um grande afecto pela senhora, havendo reciprocidade a rodos neste sentimento.
Certo dia, vistas e revistas as lojas de desporto do Funchal, contados e recontados os escudos que iam sobejando da sua actividade de engraxador, Serafim comprou o tão desejado óculo e as barbatanas. Não se conteve de contentamento, atravessando o Funchal a uma velocidade galopante. Apressou-se a esconder o equipamento na casa da D. Rosa, após lhe confidenciar a aquisição. A senhora, ciente dos riscos, pediu-lhe cauto, mas não negou a solicitude de guardar o equipamento em casa, para que o pai não soubesse, nem daí resultasse uma sova inclemente. Doravante, os seus mergulhos nas imediações da praia de S. Tiago seriam nítidos como o horizonte, após uma tempestade severa. Poderia permanecer mais tempo no fundo e deslocar-se com maior rapidez, por acção das longas barbatanas.
Numa tarde preguiçosa de Domingo, vagabundeando pela Rua Santa Maria, alcançou o Largo do Socorro. Foi surpreendido por uma celeuma provinda do litoral. Debruçando-se no muro, assistiu a um espectáculo que lhe gelou o sangue e esfriou a medula. Lá em baixo uns homens erguiam um lobo-marinho, ensanguentado, ainda estrebuchando na estrutura do pontão da Barreirinha. Ao largo vogava uma traineira e, dela, projectavam-se olhares ferinos que trespassavam o corpulento animal. Azoados, vociferavam; os apeados no pontão, riam boçalmente de satisfação perante a carnificina que assistiam. Zurziam o animal, impiedosamente. Este teria à volta de três metros de comprido. Debatia-se numa luta desesperada contra a morte. No seu corpo negro, corpulento, aclarado na zona do abdómen, viam-se golpes por onde escorria, abundantemente, sangue aos esguichos.
Recordava-se de já ter ouvido falar dos lobos-marinhos num programa radiofónico e noutros fragmentos de informações e ilustrações alusivas ao animal. Sabia que eram muito raros, mas aquele episódio deixara-o revoltado ante estas cruentas acções dos pescadores.
Ainda mal refeito do choque, numa manhã resplendorosa de sábado, o Serafim desceu ao calhau, que, no seu passo garoto, distava cinco minutos de casa. Viu barcos a pontuarem a baía, de cada vez que vinha à superfície respirar após um mergulho. Invariavelmente trazia algumas lapas. Enquanto as capturava, o António e o Rui, que o acompanhavam, deleitavam-se com o petisco. Eram amigos que se juntavam na confluência daquele mar, com aquele litoral recortado de negro, inserido na formosa baía. Adoravam capturar seres marinhos, e no caso das lapas, trincavam-nas vivas, usando a concha da própria lapa para retirar a carne suculenta da seguinte, e assim sucessivamente. Petiscavam igualmente os caranguejos vivos, chupando-lhes as patas. A maré estava baixa. O Sr. Joaquim nem sonhava que o filho já mergulhava, mostrando uma apreciável resistência e propensão natural para o mar, fazendo fé na reputação famigerada entre os amigos.
Foi num desses mergulhos que o Serafim retomou à tona e gritou: “vi um polvo, meteu-se entre as rochas!”. “Um polvo? Ena!” – exclamou o António. “Passa o arpão, Rui!” – gritou exasperadamente o Serafim. O arpão chegou às mãos do rapaz que, inspirando forte, voltou a desaparecer no fundo. Volvidos instantes, voltou à superfície e exclamou com desânimo: “afastei uma rocha, mas o polvo escapou-se”, disse. Nisto exclamou: “esperem, vi um vulto!…” Erguendo o rabo, sumiu-se naquelas águas calmas e cristalinas. Voltou à superfície algo assombrado, mas quando lhe questionaram sobre o pretenso vulto, nada proferiu, preferindo deixar-se boiar à superfície, observando o fundo do seu óculo. Do respiradouro arfava o ar encanado e ofegante. Voltou a mergulhar e permaneceu tanto tempo lá em baixo que os amigos chegaram a inquietar-se com o inusitado tempo da apneia. Quando emergiu, refez-se do oxigénio e veio até ao calhau. “O que é que viste? Falaste de um vulto!” – indagou o Rui. “Não foi nada…” – respondeu laconicamente o rapaz. Os outros entreolharam-se resignados. Juntaram as coisas e foram para casa. No dia seguinte, ao invés de ir à missa, por imposição do pai, escapuliu-se, ainda estremunhado, para a praia. Pouco passava das sete da manhã. Esperava-o um mar calmo. Inalou a maresia matinal e, depurado, fez-se à água, munido do óculo e barbatanas. Mergulhou no mesmo local do dia anterior, onde tinha avistado o vulto misterioso. No seu íntimo, ele identificara um lobo-marinho, mas deteve-se para não revelar o inesperado encontro, para não voltar a sentir a ferocidade humana contra aquele animal, reflectida nas lembranças do lobo-marinho maltratado no Cais da Barreirinha. Após algumas tentativas, a curiosidade daquela foca juvenil atreveu-se a aproximar. Rondava-o à distância e o rapaz fitava-a sempre de frente, de precaução. Tratava-se de um lobo-marinho jovem, aparentemente perdido. Inicialmente assustou-se com o insólito encontro, mas a noite anterior tinha servido de conselheira para tomar a decisão e, de forma abnegada, voltar a tentar o reencontro. Ali estava, determinado, com coragem e imbuído de pertinácia.
Decorridos poucos instantes, estava a ser alvo de investidas de reconhecimento do animal. Nadava com tanta perícia e insinuava brincadeira, rebolando, fazendo piruetas, curvando em velocidade estonteante, até aproximar-se ligeiramente do rapaz. Retorcia-se com agilidade. O lobo jovem não tinha mais de um metro de comprimento; possuía umas manchas brancas nas barbatanas dorsais, parecendo desamparado. Serafim questionou-se se não estaria perante a cria do lobo-marinho que tinha sido alvo da crueldade dos pescadores.
Apesar de ambos os seres permanecerem assustados, a aproximação foi sucedendo. Paulatinamente mais próxima. A desconfiança inicial dissipou-se na receptividade de ambos se inter-relacionarem. O Serafim tinha receio que o lobo-marinho fosse descoberto por sanguinolentos, homens boçais sem escrúpulos para os quais, só o ser humano tinha o direito de pescar e predar outros peixes.
Não conseguiu suster esta empolgante novela da natureza, resolvendo confidenciar os encontros insólitos à Dona Rosa. Esta ficou estarrecida. O Serafim estava a expor-se a um animal selvagem que, ao mínimo descuido, fulminaria o rapaz com um ataque feroz. Procurou aconselhá-lo a não interagir com a foca. Admitiu, por força da prudência que a imbuía, revelar este episódio ao Sr. Joaquim. Contudo, achou que este acto lhe imputaria remorsos pela tareia que poderia recair sobre o Serafim, sem contar com os interditos e a previsível apreensão do equipamento de mergulho. (...) (continua)

domingo, junho 17, 2007

O Engraxador do Mercado (1)


Foto tirada daqui

Os primeiros raios primaveris de sol coroavam os montes e os edifícios de cor, fazendo rejubilar o amarelo-torrado das paredes do Mercado dos Lavradores, num processo cálido, igual ao que ataviava as fachadas das ruas de um recanto africano pachorrento. Reinava um crescente bulício nas imediações deste armazém. Os agricultores, oriundos dos vários quadrantes da ilha, descarregavam os produtos recheados de suor e brio. Eram de todos os géneros e feitios, de todas as cores e formas. A terra fecunda do campo prodigalizava frutos e verduras em profusão, mas exigia sacrifícios árduos, até atingirem o aspecto fresco, maduro e viçoso que conquistava o citadino e era chamariz do visitante. Sediado na freguesia de Santa Maria Maior, o Mercado escancarava para os citadinos portadores de insónias, ou aqueles madrugadores zelosos. Os outros vinham mais tarde, turistas que viam representada na panóplia de produtos, a magia da natureza da ilha.
Na parte traseira do Mercado, ali virada para a Rua da Boa Viagem, os transeuntes ouviam o eco vociferante dos vendedores que, em pregões, esgrimiam argumentos para vender o seu peixe. Respiravam-se aqueles eflúvios provenientes da safra que jazia capitulada nos balcões alvos de mármore. Eram filas de espadas pretas, e na época deles, atuns e gaiados. Noutros recantos do Mercado, misturavam-se odores de frutas, com fragrâncias de flores que as mulheres exibiam com graciosidade, vestidas de traje típico, ali sob as arcadas que acediam ao largo central.
O Serafim, miúdo natural da zona velha da cidade, aprontava a caixa preta, gasta pelo uso, com um pedal metálico reverberante, num recanto defronte da entrada do Mercado, preparando-se para engraxar o calçado de turistas e outros imprevidentes no asseio dos sapatos. Fazia-o por herança da profissão do pai, entretanto colocado como artesão na Fábrica de Chapéus, em plena Rua Santa Maria. Tinha de se contentar em limpar os sapatos dos outros, enquanto calçava umas sapatilhas esfarrapadas. Apesar dos seus tenros dezasseis anos, exercia a actividade com afinco, sendo mais requisitado que os outros engraxadores de profissão que se posicionavam nas proximidades.
Entre crisântemos, dálias, orquídeas, estrelícias, proteias e demais ramagens, perdia-se a Dona Rosa, baptizada assim pela sina de vender flores. Trabalhava no interior do Mercado, ali paredes-meias com a actividade do Serafim. Era sua amiga, tendo a caridade de, por vezes, lhe oferecer uma fruta ou um naco de pão, pois o miúdo era descuidado e a orfandade de mãe deixara-o perdido na sua imberbe condição. Comiserada, Dona Rosa zelava pelo rapaz, dando-lhe a guarida matriarcal. Era vizinha de casa, lá para os arrabaldes da praia de São Tiago. Ali mesmo, encafuado pelo Forte do mesmo nome, outrora protector de investidas de corsários, agora observador e conivente com as aventuras fugidias do Serafim. Eram clandestinas, pois, na opinião do pai, as incursões ao mar não lhe ditavam qualquer ventura, além de estar atreito a relações com gente-do-calhau, pouco prestigiada por aquelas bandas. Das muralhas, encimadas pela pedra vermelha do Forte, avistava-se o Porto do Funchal.
Assim que as ruas da cidade despovoavam, o Serafim regressava a casa, carregando às costas a caixa onde reunia as latas de graxa, cremes, escovas, panos e demais atavios de sapatos. Tinha de prestar contas ao pai – o Sr. Joaquim –, que reunia o mísero montante do seu ganho ao da sua actividade de artesão, totalizando uma ínfima quantia para sustentar os seus quatro filhos. À revelia do mentor, o Serafim ia amealhando as gratificações provenientes de caprichosas gorjetas. Tinha o fito de comprar um óculo de mergulho e umas barbatanas para poder explorar a costa anexa à praia de São Tiago. Por agora, juntava-se com alguns miúdos dali, também eles afeiçoados aos aromas marítimos. Mergulhava sem equipamento, mas o sonho de explorar a costa com outras condições, fosse para colher umas lapas, andar na apanha dos caranguejos ou simplesmente explorar a vida subaquática, fascinava-o sobremaneira. Era de somenos importância a hora de almoço, abdicando frequentemente desta refeição para dar um mergulho clandestino a meio do dia. Fazia-o sub-repticiamente, à revelia do pai, não fosse um circunstante bufar-lhe que o filho se esquivara de engraxar calçado no Largo dos Lavradores. (...) (continua)