terça-feira, setembro 18, 2007

Duo



Quando tudo se conjugava para deparar-me com o sossego matinal de um abraço ripícola, embrenhado na luz urbana, a aproximação da amurada da pequena e catita Saint Louis atingiu-me com graves de contrabaixo, e, sem mais delongas, subitamente fui surpreendido por um solo de saxofone. A melodia soava-me familiar. Não somente pelo som metálico característico, mas porque, num lance mental, identifiquei so what. Gosto do insólito, mas num feriado pachorrento, nada fazia prever a audição destes sons, tão-pouco reconhecer a melodia de Miles irrompendo na lisura daquela bucólica manhã. Desci o lanço de degraus na ânsia contida de encontrar os músicos ao nível do rio. A versão duo perfilava-se no microclima recriado pela sombra afagadora de um plátano. Sobre aquela calçada granítica, polida pelo tempo, os artistas ensaiavam acordes, compassos, variações para a execução do standart; o concerto era dirigido às infindáveis ondinhas que os barcos empurravam para a margem. Era um 1º de Maio e, por todo o lado, erguiam-se pequenos mostruários vendendo umas flores sóbrias, brancas, que não descortinei o significado. Deduzi uma evocação ao dia do trabalhador, enquanto os músicos, de dissemelhante ancestralidade, comungavam aquele célebre trecho que eu rememorava, que me deliciava e comprazia. Fotografá-los foi um esforço de monta para quem a invasão é uma afronta, para quem prefere que certos momentos fiquem retratados na retina, sem lhes usurpar a alma. O solo do saxofone ia drenando nos interstícios da ilhota, o rio respondia orquestrando uma harmonia silenciosa que chapinhava ritmada. A generosidade do plátano, de grandiosidade tão frondosa como a sua copa, oferendava-me um lugar de confortável assento, ensombrado pela sua frescura. Acolhido ali, tal como enleado pela cidade plural, escutava o enleante decoro entre aqueles músicos. Não obstante a dimensão do contrabaixo, o saxofone intercalava-o harmonioso, reverente, enquanto a condição racial não distinguia entre seres ou cores, confraternizavam-se na igualdade una da fraternidade. A radiância cultural ofuscava qualquer esgar de fútil mesquinhez, e a pluralidade dominante, definhava a maledicência. A tolerância, aqui, é bandeira, a arte é ovacionada, seja ela oriunda da terra ou de qualquer ermo sideral.
A impertinência da minha escrita pareceu intrigar este enlace melódico, e, cautelarmente, deixei-os entregues ao ensaio, seguindo na direcção inversa, ouvindo desfalecer so what à medida que me embrenhava num tempo esquecido do qual refulgiam os últimos compassos, até ao regresso…



Nota: So What é a primeira faixa do album Kind of Blue de Miles Davis editado originalmente pela Columbia em 1962, considerado por muitos amantes e críticos de jazz, como a maior obra-prima do género.

segunda-feira, setembro 10, 2007

Grandes Músicas


Foto tirada daqui

Já o crepúsculo tomava o entardecer, enquanto eu, rendido pelo cansaço, regressava do desporto habitual; fui apanhado pela inusitada sonoridade de uma orquestra clássica distante, vertendo violinos e ressoando melodia em profusão. Já avistava a minha carripana, quando, a poucos metros dela, noutra viatura, localizei a fonte daquele delírio sinfónico. Detrás dos vidros descidos, vi um jovem no interior, compenetrado na música. Absorto, nem deu pela minha aproximação, tão-pouco a de outras que por ali erravam. Perscrutei recatadamente em busca de uma companhia feminina ao seu lado, a quem ele pudesse estar a apresentar a magia erudita dos grandes clássicos, forma de sedução legítima e original, todavia, apercebi-me dele sozinho. Seduzia-se pela música e à música. Retemperei do cansaço regando-me de água abundante, enquanto o compasso da orquestra, ora aligeirava, ora recrudescia. Apetecia-me aproximar do rapaz e pedir-lhe elementos sobre a obra, tal era o aprazimento. Porém, detive-me na sensatez de não perturbar a audição. O deleite da música era fruído na perfeição pelo moço, mas a pouca distância, o comprazimento atingia-me, aliado ao saciar que avultados goles faziam na reposição da hidratação perdida. Ali ao lado, aquele a quem muitos rotulariam de cromo, era motivo da minha leda feição. É rejuvenescedor quando me deparo com quem quebre a monotonia e os estereótipos vigentes, estes que nos desumanizam e nos obsequiam com a estupidificação.
A música era difundida com pujança. Ao longe, a orquestra era azul, dela ecoando uma intensidade espelhada de mar, melodiosa e púdica. António Cartaxo, autor do programa radiofónico “grandes músicas”, faria desta visão, um relance narrativo de erudição apurada, com adjectivação q.b. para nos arrebatar mais uma vez com os grandes clássicos e compositores, e suas sapientes histórias. Transcreveria a conjuntura deste cenário como um apelo de violinos que varria o crepúsculo, aludindo ao troar dos tambores, como o repto epopeico da música clássica, anunciando o seu espaço, enquanto um maestro invisível migrava a cada mente passante, alertando para a música, a verdadeira mestria musical, aquela que não tem definição, mas que não precisa ser explicada. Aquela que rivaliza e não tem expressão em muita sonoridade que se denomina de música e não o é. Faltou-me o domínio do género para identificar a composição e o seu autor, careci ainda de conhecimento musical para localizar a sinfónica e o condutor que, em simbiose, enfeitiçavam as horas tardias de um ocaso semanal; o jovem, à revelia do tempo e das reacções da redondeza, por motivos que para aqui não são chamados, espraiava o olhar para o horizonte, e embevecia-se de mar, à mercê dos efeitos terapêuticos dos violinos crepusculares.

segunda-feira, setembro 03, 2007

Eduardo Prado Coelho

Habituei-me a lê-lo, fazia-o ultimamente nas suas crónicas do Público. Deleitei-me a ouvi-lo falar de literatura como ninguém, naquele seu timbre afável, sereno, fazendo discorrer uma sabedoria rara, enciclopédica, pincelada da humildade que lhe era inata. Adornava as suas intervenções com uma jovialidade e humor epidémico, naqueles seus gestos medidos por uma absoluta lisura de trato, de bem com a vida e com o próximo, num sorriso de horizonte, um olhar de alvorada. Lutava contra a doença, mas se o fazia, nem se vislumbrava qualquer sinal de dor ou inconformismo na sua face. Era um homem bom. Privei com as suas palavras, algumas visando um certo tipo de democracia insular; guardava dele uma opinião favorável, respeitável, de admiração. Queria ser assim, sereno, calmo, exteriorizando aquela inesgotável bonomia. Sou um produto que resulta de uma sociedade apressada, que muitos pensadores dizem caminhar para o abismo. Espero que qualquer atavismo com este arquétipo social se restrinja à pressa, porque tenho medo das alturas, sobretudo daquelas sem protecção.
Após a derradeira crónica de Eduardo Prado Coelho, li alguns depoimentos, alguns testemunhos evocativos ao homem. Um deles chamou-me à atenção pela dimensão do nome: Mário de Carvalho. Na sua brilhante evocação, fez referência aos tempos de estudante onde privou com Eduardo. Antes disso, as suas palavras fremiam com a emoção de escrever sobre a perda deste amigo, sobre o homem contemporâneo a si, por quem jamais supôs escrever uma memória. Aludiu a uma luz que se apagara, de uma geração de triunfo. O homem franco que fez parte da malha que aos poucos se vai deslassando, ficando esburacada das vidas que estruturam uma existência. Dá para reflectir, lembrando Eduardo Prado Coelho e a efemeridade de tudo, lembrando Mário de Carvalho pela presença que despoleta em mim, um misto de admiração e respeito pelo escritor, pelo homem, um dos nomes mais consensuais e afirmativos da literatura e língua portuguesa.

domingo, setembro 02, 2007

Porquês de Girassol



Foto tirada daqui

Persegue-me a ideia peregrina de semear um girassol. Não aconselho que façam exercícios mentais que perscrutem uma razão plausível, nesta minha desordem. Hipóteses? São variadas e multifacetadas, abarcando foros de vária índole. De facto, não abundam planícies de girassóis na ilha. Nem tão-pouco, as planícies, apenas a imensidão plana de mar. É tudo tão abrupto e agreste, mas a virtude escasseia. Não no abrupto e na rocha dura, mas no barro, na perfídia bolorenta de certas mentes. Lá, nas planícies de mar, os girassóis perfumariam um interior azulino e profundo, mas jamais descerrariam no seu esplendor. Quero ver as flores! E, porquê um girassol? Dizem os compêndios seculares que esta flor simboliza o orgulho e a nobreza. Outros falam de lealdade e condutas a ela aparentadas. Mas pegaria no orgulho e nobreza; hirta, a flor do girassol centra a sua estrutura floral no astro sol e segue-o obediente. É uma flor que personifica a nobreza, e cultiva o paganismo. Esta veneração à energia solar é uma sincronia com a natureza, é uma comunhão plena com a essência da vida.
Mas, porquê esta obsessão pelo girassol? Quando crescido, compreendi certa revolução, e as flores simbolizaram-na. Persegue-me esse desejo marginal de revolucionar algo, com flores. Só vive plenamente quem passa por uma revolução. Por causas! Creio que a força desta flor está patente na sua postura erguida, soberana e nobre. Na verdade quero colorir a Madeira de girassóis, quero que estas flores irradiem a sua nobreza e se dispersem pelo abrupto do relevo, exorcizando o opróbrio. Que o diluam na sua virtude e desencadeiem um movimento de floração invencível. Quero que a espiritualidade desta flor, patente no seu culto à natureza, inculque noutros seres, a urgência de respeito e comunhão harmoniosa com o Cosmos. Quero que o amarelo das suas flores, orientado para a luz, indique um fito, um Sul tépido e sereno, quero que mostre um caminho que nos livre da encruzilhada trôpega do comodismo. Quero o girassol na minha varanda! Sem mais espaço, fico-me por um exemplar, mas contem comigo para esta trama. A conspiração consumar-se-á em cadência paulatina. A pouco e pouco, estes mensageiros de uma missiva divina, chegada por correio, irão desencadear a revolução, graças à potencialidade de transformar grãozinhos pretinhos num imaginário que idealizo: de Verdade! Girassol cresce, cresce…