O Grotesco ao Som do Tecno
A testemunhar pelas emissoras de rádio, pela sonoridade difundida nos transportes colectivos, automóveis, no ruído que derrama dos bares ou similares de restauração, aqui a modernidade tem um nome: música electrónica ou tecnoqualquercoisa. Daquela repetitiva, de arranjos simples, primários, de efeitos entendiantes. Numa expedição ao Dniepre, ao fim-de-semana as embarcações acolhem muitos ucranianos que, ávidos de calor e sol, expurgam o marasmo acumulado no Inverno com a receita apropriada: música a preceito que, aqui, habitualmente utilizamos em discotecas, mas num ambiente a condizer e devidamente circunscrito. A julgar pela adesão dos barqueiros, todos eles equipando a sua embarcação de potentes colunas, pelo Dniepre acima compete-se a ver quem excede quem em decibéis. Ousei pensar que uma embarcação destas no Sena seria imediatamente fuzilada ou justificaria umas quantas greves dos operadores turísticos parisienses que, na cidade-luz, promovem estes passeios com outro primor, ou ainda revolta dos que pautam o seu negócio envoltos numa aura aprazível de recato e assaz bom gosto. Aqui, pelo Dniepre e nos espaços destinados à fruição da população, a música tresloucada convida a beber, a fumar, a ensaiar um pé-de-dança; é realmente embrutecedora, tornando o momento mais esquizofrénico, indiferente a qualquer lisura que a paisagem pudesse proporcionar; se é uma forma de expurgar o marasmo que habita nestas gentes, permitindo-lhe dar largas ao absurdo para esquecer as provações quotidianas da vida ucraniana, desconheço. Pressenti, isso sim, que Emir Kusturica realizaria mais uma película do género grotesto e satírico, inspirando-se neste cenário. Dar expressão à alegria não é condenável, bem pelo contrário, mas estes passeios são estupidamente saloios e condicionam a sua fruição a outras classes etárias, a potenciais turistas para quem o Dniepre poderia oferecer uma comprazível distracção. Antes prefere-se pautar o ambiente por este frenesim histérico, propenso a cefaleias e indigestões.
O fim-de-semana, nesta estação onde o sol começa a prodigalizar uma temperatura agradável, leva a este exagero. Os ajuntamentos jovens fazem-se por variadíssimos locais, e ao contrário do que se esperava, um passado sofrido de um povo mártire pelas condições em que viveu, contrasta com esta efusividade desgarrada.
E se estes sinais podem ser conotados com modernismo retardado, avistado um par de moças a passear de mão dada pode suscitar equívocos, caracterizando uma sociedade desprovida de preconceitos, tolerante, progressista. Foi assim que fiz a minha interpretação, mas fui rapidamente elucidado que aqui não abundavam as lésbicas (à vista desarmada), mas que as garotas jovens estavam acostumadas a passeios com esta intimidade. Consta mesmo ser comum mulheres mais velhas caminharem de gancho, numa demonstração de afecto que normalmente tendemos a atribuir a povos mais calorosos no trato… puro engano.