quarta-feira, julho 22, 2009

O Grotesco ao Som do Tecno


A testemunhar pelas emissoras de rádio, pela sonoridade difundida nos transportes colectivos, automóveis, no ruído que derrama dos bares ou similares de restauração, aqui a modernidade tem um nome: música electrónica ou tecnoqualquercoisa. Daquela repetitiva, de arranjos simples, primários, de efeitos entendiantes. Numa expedição ao Dniepre, ao fim-de-semana as embarcações acolhem muitos ucranianos que, ávidos de calor e sol, expurgam o marasmo acumulado no Inverno com a receita apropriada: música a preceito que, aqui, habitualmente utilizamos em discotecas, mas num ambiente a condizer e devidamente circunscrito. A julgar pela adesão dos barqueiros, todos eles equipando a sua embarcação de potentes colunas, pelo Dniepre acima compete-se a ver quem excede quem em decibéis. Ousei pensar que uma embarcação destas no Sena seria imediatamente fuzilada ou justificaria umas quantas greves dos operadores turísticos parisienses que, na cidade-luz, promovem estes passeios com outro primor, ou ainda revolta dos que pautam o seu negócio envoltos numa aura aprazível de recato e assaz bom gosto. Aqui, pelo Dniepre e nos espaços destinados à fruição da população, a música tresloucada convida a beber, a fumar, a ensaiar um pé-de-dança; é realmente embrutecedora, tornando o momento mais esquizofrénico, indiferente a qualquer lisura que a paisagem pudesse proporcionar; se é uma forma de expurgar o marasmo que habita nestas gentes, permitindo-lhe dar largas ao absurdo para esquecer as provações quotidianas da vida ucraniana, desconheço. Pressenti, isso sim, que Emir Kusturica realizaria mais uma película do género grotesto e satírico, inspirando-se neste cenário. Dar expressão à alegria não é condenável, bem pelo contrário, mas estes passeios são estupidamente saloios e condicionam a sua fruição a outras classes etárias, a potenciais turistas para quem o Dniepre poderia oferecer uma comprazível distracção. Antes prefere-se pautar o ambiente por este frenesim histérico, propenso a cefaleias e indigestões.

O fim-de-semana, nesta estação onde o sol começa a prodigalizar uma temperatura agradável, leva a este exagero. Os ajuntamentos jovens fazem-se por variadíssimos locais, e ao contrário do que se esperava, um passado sofrido de um povo mártire pelas condições em que viveu, contrasta com esta efusividade desgarrada.
E se estes sinais podem ser conotados com modernismo retardado, avistado um par de moças a passear de mão dada pode suscitar equívocos, caracterizando uma sociedade desprovida de preconceitos, tolerante, progressista. Foi assim que fiz a minha interpretação, mas fui rapidamente elucidado que aqui não abundavam as lésbicas (à vista desarmada), mas que as garotas jovens estavam acostumadas a passeios com esta intimidade. Consta mesmo ser comum mulheres mais velhas caminharem de gancho, numa demonstração de afecto que normalmente tendemos a atribuir a povos mais calorosos no trato… puro engano.

segunda-feira, julho 06, 2009

Do Ouro das Cúpulas…


Avistam-se de quase todos os pontos da cidade. São mensageiras que ligam o mundano ao divino, antes que o profano esmague as bençãos imprecadas ou os créus descubram a falácia. Mas nem assim deixam de reluzir a todas as estações, teimando no dourado, imunes à corrosão, agrupando-se delicadamente num núcleo de mosteiros sobranceiro ao rio, ou simplesmente pontilhando a metrópole em pequenos núcleos que se erguem dos alicerces de igrejas catitas, convocando a miséria e a penúria para a oração, mostrando uma nova ordem, prometendo a esperança numa vida mais venturosa no porvir, porque nesta, nas condições que se observam, ela exibe-se dura, injusta e crua.
A doutrina ortodoxa exibe estas cúpulas faustosas, algumas graciosas, enquanto no interior do seu espaço de culto, reina uma decoração discreta, desprovida de estátuas magoadas, enriquecido por uma atmosfera calorosa, sombria e aconchegante. Os cânticos ortodoxos inundam de paz infinita quem os ouve, não há crente nem incréu que não suavize a sua iniquidade exposto a essas vozes celestiais.
Rio acima, a cidade parece não ter fim e as cúpulas acompanham-na para que não haja desnorte religioso. Elas assomam por entre arvoredo e ainda resistem aos prédios circundantes que tendem a insubordinar-se insolentemente contra a sua reverência, por desrespeito ou por espelharem a prevalência avassaladora do profano sobre o sagrado. O ouro exuberante ergue-se para os céus, espaventoso, como se daquelas cúpulas houvesse um aceno a deus, desesperado, corrompendo-o com ouro.


As estátuas que as igrejas ortodoxas não exibem, encontram-se espalhadas ao longo da cidade, alcandoradas para o rio. São elas símbolos do país, dos fundadores da cidade que se equilibram numa barcaça, santos padroeiros e outros heróis que materializam as memórias do passado. Há um arco metálico que simboliza a amizade celebrada, de duração risível, entre países irmãos como são a Ucrânia e a Rússia. Serve o arco da amizade de espaço de actividades lúdicas, esperando que neste exercício cultural seja resgatada a amizade que as diplomacias não conseguem.
Recordo ter lido menções a cidades das mil torres, cidades douradas, mas Kiev não é menos dourada. Os sinais de um passado recente desditoso e fértil em calamidades, guerras, acidentes fatídicos como o flagelo funesto de Chernobyl, entre outros massacres ocorridos na 2ª Grande Guerra que o povo ucraniano decidiu lembrar, está patente num museu evocativo da efeméride, para que a memória não esqueça… Nesse lugar ergue-se com invejável elegância, grandiosa postura, uma mulher de braços levantados ostentando sinais da libertação e da glória. Sob a sua jurisdição está o edifício que acolhe o museu mais emblemático da cidade, que não conseguiu dissociar-se dos traços bélicos. De contrapeso serve o manto verde que bordeja o Dniepre, restaurando a harmonia e a paz; é constituído por castanheiros, bétulas, freixos, choupos e outras caducifólias, que a perenidade não resiste aos rigores de inverno.
Kiev tem charme, colinas, tem uma rua pitoresca, antiga, ramificada por alguns atalhos antigos; toda esta área é comparada por alguns ao bairro de Montmartre em Paris. Parece-me exagerado, mas estas tentativas só vêm menosprezar a singular identidade dos lugares. Incomparáveis e obscenas são as antípodas reinantes: riqueza e pobreza. Não culpabilizo as cúpulas ortodoxas por esta discrepância, nem sei se deslindarei as suas razões.