Flutuando na História
Apeamos do Vaporetto e Veneza flutua, deixa-se levar na lisura de uma laguna que lhe cadencia um ritmo ondulante. O tráfego frenético não disfarça a ausência do fausto glorioso de outras eras, e não são suficientes as sumptuosidades palacianas para se perceber que essas fachadas já não têm o mesmo brilho. Trata-se de um esqueleto luxuriante, com linhas que emanam riqueza, mas cujo âmago está deteriorado, tal como os edifícios que se desfazem em ruínas, ainda pautados pelas mesmas ondas que lhes chapinham as costuras, e pelos ecos ininteligíveis de uma miscelânea de línguas que circulam por labirínticos becos, canais e pontes, atavismos de mil e um lugares que sonham com o mito. Roncam motores distantes, abafados, rivalizando com o frenesim turístico, enquanto nos lugares raros de calmaria, o rasgar das águas é uma suave melodia.
Veneza despiu-se de identidade e ondula nua, sem um véu que lhe devolva o pudor, a essência que se encavalitou nas cento e tais ilhas que de berço lhe augurou um radioso crescimento.
A graciosidade é patenteada pelo singelo de pontes, canais, pelo charme que se adivinha ao virar de cada esquina, decrépito ancoradouro de uma eternidade metafísica, alicerçada novamente no mito.
O povo reúne-se em campos, poucos deles votados a residentes. A massificação turística assenhoreia-se deles e quebra-lhes a harmonia. Nos escassos, mais escondidos, ainda se agrupam as gerações jovens venezianas que lutam de forma impotente pela renovação do burgo, enquanto a cidade definha solidária com as paredes e apeadeiros marginais puídos pela saudade.
Há um embalo nostálgico, ou um embarcar interno que se faz por gôndolas, a derradeira divisa que nos devolve o autêntico. O manobrar é o mesmo de antes e será o mesmo de amanhã, mesmo que em vez de um veneziano, se equilibre na popa um turco, um romeno, um chinês ou um macho lusitano. O negro e luzidio costado da embarcação contrasta com paredes que se esboroam, pedras que não escondem as rugas da história. A singularidade continua a embevecer, sobretudo na graciosidade que o equilíbrio dos gondolieri recreia na paisagem aquosa. É um desenho singelo que se distingue da exaltação de sumptuosidade e luxúria; e mesmo que Veneza durma sossegada, a maré-alta aflora na principal praça e as águas sobem progressivamente, refrescando a memória, inundando o seio de uma mulher nua que, impávida, arfa e confunde a carícia com o afago de um amante.
Veneza despiu-se de identidade e ondula nua, sem um véu que lhe devolva o pudor, a essência que se encavalitou nas cento e tais ilhas que de berço lhe augurou um radioso crescimento.
A graciosidade é patenteada pelo singelo de pontes, canais, pelo charme que se adivinha ao virar de cada esquina, decrépito ancoradouro de uma eternidade metafísica, alicerçada novamente no mito.
O povo reúne-se em campos, poucos deles votados a residentes. A massificação turística assenhoreia-se deles e quebra-lhes a harmonia. Nos escassos, mais escondidos, ainda se agrupam as gerações jovens venezianas que lutam de forma impotente pela renovação do burgo, enquanto a cidade definha solidária com as paredes e apeadeiros marginais puídos pela saudade.
Há um embalo nostálgico, ou um embarcar interno que se faz por gôndolas, a derradeira divisa que nos devolve o autêntico. O manobrar é o mesmo de antes e será o mesmo de amanhã, mesmo que em vez de um veneziano, se equilibre na popa um turco, um romeno, um chinês ou um macho lusitano. O negro e luzidio costado da embarcação contrasta com paredes que se esboroam, pedras que não escondem as rugas da história. A singularidade continua a embevecer, sobretudo na graciosidade que o equilíbrio dos gondolieri recreia na paisagem aquosa. É um desenho singelo que se distingue da exaltação de sumptuosidade e luxúria; e mesmo que Veneza durma sossegada, a maré-alta aflora na principal praça e as águas sobem progressivamente, refrescando a memória, inundando o seio de uma mulher nua que, impávida, arfa e confunde a carícia com o afago de um amante.