quinta-feira, julho 17, 2008

Flutuando na História


Apeamos do Vaporetto e Veneza flutua, deixa-se levar na lisura de uma laguna que lhe cadencia um ritmo ondulante. O tráfego frenético não disfarça a ausência do fausto glorioso de outras eras, e não são suficientes as sumptuosidades palacianas para se perceber que essas fachadas já não têm o mesmo brilho. Trata-se de um esqueleto luxuriante, com linhas que emanam riqueza, mas cujo âmago está deteriorado, tal como os edifícios que se desfazem em ruínas, ainda pautados pelas mesmas ondas que lhes chapinham as costuras, e pelos ecos ininteligíveis de uma miscelânea de línguas que circulam por labirínticos becos, canais e pontes, atavismos de mil e um lugares que sonham com o mito. Roncam motores distantes, abafados, rivalizando com o frenesim turístico, enquanto nos lugares raros de calmaria, o rasgar das águas é uma suave melodia.
Veneza despiu-se de identidade e ondula nua, sem um véu que lhe devolva o pudor, a essência que se encavalitou nas cento e tais ilhas que de berço lhe augurou um radioso crescimento.
A graciosidade é patenteada pelo singelo de pontes, canais, pelo charme que se adivinha ao virar de cada esquina, decrépito ancoradouro de uma eternidade metafísica, alicerçada novamente no mito.
O povo reúne-se em campos, poucos deles votados a residentes. A massificação turística assenhoreia-se deles e quebra-lhes a harmonia. Nos escassos, mais escondidos, ainda se agrupam as gerações jovens venezianas que lutam de forma impotente pela renovação do burgo, enquanto a cidade definha solidária com as paredes e apeadeiros marginais puídos pela saudade.
Há um embalo nostálgico, ou um embarcar interno que se faz por gôndolas, a derradeira divisa que nos devolve o autêntico. O manobrar é o mesmo de antes e será o mesmo de amanhã, mesmo que em vez de um veneziano, se equilibre na popa um turco, um romeno, um chinês ou um macho lusitano. O negro e luzidio costado da embarcação contrasta com paredes que se esboroam, pedras que não escondem as rugas da história. A singularidade continua a embevecer, sobretudo na graciosidade que o equilíbrio dos gondolieri recreia na paisagem aquosa. É um desenho singelo que se distingue da exaltação de sumptuosidade e luxúria; e mesmo que Veneza durma sossegada, a maré-alta aflora na principal praça e as águas sobem progressivamente, refrescando a memória, inundando o seio de uma mulher nua que, impávida, arfa e confunde a carícia com o afago de um amante.

quarta-feira, julho 09, 2008

Laivos de Fantástico


Mergulhei de chofre num filme surrealista. Sinto-me enfeitiçado pela atmosfera feérica que me enleia, que me baldeia sem dó, alienando-me da crueza do real. Não sou figurante capaz de interagir com gnomos, duendes ou fadas, de forma a me sentir afeiçoado com o meio, mas esforço-me por uma idiossincrasia plena. Tenho noção de que este estado alucinante não é duradouro, antes fugaz como um suspiro. Sustenho o ar e esmero-me por suspender a magia; o fantástico; o insólito! Insisto: nem figurante ficcional, tão-pouco personagem de destaque num enredo que não me personifica. Gosto de levitar na sublimação da fantasia, mas nada que possa preterir os meus sonhos. Eles são a minha guarida. Representar nunca foi meu apanágio, pois habita-me uma timidez esquiva. É-me suficiente esta estância na espera de um prato de salada. No entretanto, e sem a certeza de um prato real, vou bebendo a densa atmosfera que me invade, sem um cheiro definido, mas plena de volatilidade misteriosa. Em meu redor o estarrecimento varre qualquer realismo intrometido. Somente pequenos sinais me compaginam com a realidade; os preços, como se tudo fosse oferecido, não estão à vista do consumidor, como noutro qualquer cenário de país das maravilhas. Apresentam-se nuns caderninhos para o efeito, janotas, obrigando-nos a dedilhá-los em mesas engalanadas, onde reina uma finura desusada que não me colhe simpatia. Ou sou eu que nunca me revi na fidalguia burguesa? A jactância nunca reinou no meu âmago, ou em algo que eu tacitamente sancionasse. Mas há tanto por onde me perder neste assombro. Atalho por esta rua empedrada, iluminada pelo lusco-fusco espectral que transforma o traçado num desenho animado delicioso. Lá em cima sei que a margem do rio é atravessada por uma tripla ponte, branca como a alvorada. Liga o passado ao futuro, ou oferece a este povo a fatalidade de uma escolha, patente nesta trilogia invulgar da vida. Resta a esperança de que a travessia se faça pela ponte certa. Todas exibem um aspecto apelativo, mas o mais caricato é que todas levam ao mesmo fim. Isto evoca-me outras questões mais politiqueiras e/ou religiosas… Dispenso-as.

Retomo a fantasia, antes que uma distracção me abalroe para a fatalidade real. No alto do cume jaz um castelo que me espera. Tinha de haver um castelo num cenário desta magnitude. Posso atingir o seu topo por funicular, mas esta modernice reservo-a aos apologistas do ócio. Preferi galgar o rio ljubljanica para montante, deparando-me com uma ponte custodiada por dragões ferozes que, petrificados em estátua, por vezes revelam trejeitos na sombra que fazem cobrança de portagem aos passantes que ousam atravessá-la, em doses de medo. Será a entrada do inferno ou simples obedientes vigilantes que alertam para o mal? Na minha descrença, detenho-me na passagem e, temendo os maus presságios de uma travessia, desço ao epicentro da magia, volvendo aos alegres edifícios de minucioso recorte que se revelam nas luzes difusas da noite, encobrindo a realidade com um maravilhoso manto. Prefiro de longe a ponte tripla sem simbologias irresolúveis. Normalmente vacilo na dúvida. Neste recuo, cruzam-se-me bicicletas no escuro, riscando-o de luzes famintas que não quebram a atmosfera. Mais além são viaturas reais que evito. Prefiro continuar a vaguear nas vielas de uma cidade catita, que derrama um brilho onírico que desfalece na corrente suave das águas. Neste vagabundear fui surpreendido pela sonoridade de um êxito dos anos oitenta. Ressoava distante, até que identifiquei a janela de onde difundia. Mais adiante, numa graciosa ruela velada por um arco, ouvia-se outro êxito dos anos oitenta, contemporâneo do anterior. Sintomático de que esta urbe permanece suspensa no passado, qual cenário cinéfilo para realizadores do cinema fantástico.

Escolhi banhar-me deste pulsar irreal, enquanto no rio banham-se reflexos que se evadem das ruas ribeirinhas. Os prédios exibem uma peculiaridade que não lhes dá qualquer designação estilística, primam pela originalidade, lembrando criações destinadas ao entretenimento puro e belo que algumas crianças privilegiadas têm. Serpenteio abaixo, acima, num perscrutar atento que capta todo este encantamento, consciente que estas sensações não nos embriagam para a eternidade. Amanhã espera-me outro dia, sem as portagens dos dragões, nem gnomos, duendes ou a densa atmosfera que me acolheu na noite de um lugar que fez parte de uma antiga federação que se livrou de guerras. Porquê? Há cenários cuja harmonia propicia paz. É como se um escudo energético protegesse lugares assim, por isso, será bom acordar em Ljubljana. Regressando a casa e à realidade, ramos de salgueiros pendentes para o rio acenaram-me, não sei se imbuídos da fantasia derradeira, se na deriva de uma suave brisa. Fantasia ou não, ainda questiono o esqueleto humano enjaulado e dependurado numa esquina de um quarteirão da cidade velha. Creio que fez jus a todo o assombramento que, no alegre delírio, esconde sempre um lado fantasmagórico.