domingo, junho 28, 2009

Neva na Primavera Ucraniana


Estranha o meu leitor, tal como eu estranharia se omitisse os detalhes do que assisto: aqui, um pouco por toda a parte, há uma brisa primaveril que arrasta consigo pequenos flocos brancos. Se não fosse primavera e a temperatura não estivesse amena, atribuiria o fenómeno a mais uma judiaria do tempo. Mas estes flocos não são de neve, embora faça sentido essa parecença numa cidade cuja neve faz aparições frequentes e onde o rio chega a congelar durante meses consecutivos de inverno. É uma neve inusitada, recriada pela queda da flor dos Castanheiros que, nesta altura, se exibem floridos, frondosos e que dotam a cidade de uma identidade própria. Ao ser varrida por esta aragem fresca e ousada, oriunda do Norte, estes flocos florais caiem oblíquos e adejam ao sabor do vento e dos caprichos que o impulsionam. O toque destes flocos na pele é sedoso e singelo, porém seco e tépido, o que o distingue dos verdadeiros cristais de neve, brandos e gélidos. Deve ser por saudosismo, mas este cenário convoca o Inverno, revisitando-o no remanso da amenidade primaveril. A abundância verdejante que orla as ruas, o rio e todos os espaços, assegura que esses flocos se espalhem por toda a urbe. Além espraia-se a metrópole que já derreteu o gelo inicial da minha chegada e que aos poucos me vai maravilhando. Deleito-me no verde imenso, ou não fosse deste verde que, na minha geografia, emana a esperança, e aqui desabrocha o nevar. E de graciosidade a cidade é pródiga; é no seu encalço que rumo pelo seu âmago, voltando de seguida à foz onde desaguam as palavras.

terça-feira, junho 16, 2009

Chegada Nebulosa


Mergulhei na bruma densa que cobria os campos marginais do rio Dniepre. Uma nebulosa pairava sobre a terra plana, estendendo-se viscosa pelos arrabaldes, cobrindo campos e deixando desguarnecidas as sebes delimitadoras, dispostas em esquadria, formadas por choupos e talvez freixos. O mosaico resultante era aquoso, parcialmente líquido, demasiadamente vaporoso. Era difícil decifrar onde começava a terra e terminava o rio, onde começava o sonho e findava a realidade. As tonalidades da aurora não prodigalizavam uma manhã resplandecente. A alvorada iria dissipar as minhas dúvidas, porém, este cenário apocalíptico, plúmbeo, desolador, dominado por gases que pensava estarem devidamente canalizados, indiferentes às polémicas invernais que confrontaram as diplomacias russas e ucranianas, intrigavam-me. Não seria mais uma catástrofe, uma réplica de Chernobyl que fatalmente me colheria, mas gaseificada? A minha aterragem foi precedida por este avistamento aéreo, mediada pelas operações que no virar do aeroplano, mostravam uma amplitude maior do panorama aéreo; foi sucedida pelo júbilo dos emigrantes à chegada. Indaguei se não teriam sido acometidos por um assomo de saudade, aquela que tanto nos orgulha e nos faz apropriarmo-nos dela, como se de uma razão primordial se tratasse. Sem tempo para dissertar sobre este encriptado sentimento, recordo que temi pousar num pântano, mas a exultação dominante, visível em rostos estremunhados, fez-me acreditar em melhor ventura. Ainda fui assaltado por pensamentos pessimistas que evocavam a incredulidade de todos quantos não entenderam a minha escolha. Quase sem excepção, a incompreensão reinou. Todavia, este ou a maioria dos países de imigração de Portugal estão conotados com a miséria, com a fealdade, como se os emigrantes viessem de um lugar amaldiçoado. Tendemos a rotular ainda os seus habitantes de rudes, pérfidos e frios… aqui exceptua-se o Brasil e outros países costeiros contemplados com praias e cenários tropicais. A maioria insciente esquece que a Ucrânia também reúne algumas praias, e que no Sul existe uma península chamada de Crimeia, de belezas e riquezas arqueológicas ímpares que quase rivalizam com as existentes na Grécia. Imensas praias banhadas pelo mar negro que, não apenas banham a península, como outra parte da costa meridional do país.

Lá fora, todo este cenário sumiu-se; em menos de nada, vi-me a circular depressa numa avenida infinita. No avião que me trouxe, nem sinais de portugueses. Definitivamente este não era destino de férias. Mas aqui estava eu, após um devaneio mental que se afigurava o melhor prelúdio para antecipar a minha chegada à Rússia. Descobri que aqui, nesta terra abençoada por um rio imenso, por pequenas colinas verdejantes constituídas maioritariamente por Castanheiros, algumas Bétulas e Choupos, morava a mais antiga capital da Rússia: a cidade mais ancestral dos eslavos. A escolha deste lugar ficou a dever-se à sua excelência, protegida pelas colinas que vigiam um vale abrigado onde foram edificadas as primeiras habitações, com uma porta fácil para o rio. Estrategicamente favorável, a localização da urbe beneficiou da sua confluência com o comércio de cerâmica, metal e outros bens entre o Mar Báltico e o Mar Negro.
A avenida rectilínea que me acolheu decepcionou-me à medida que a cidade se aproximava. Senti um estremecimento pela opção. Que vazio! Que lugar sem harmonia! Estaria o condutor transportando-me para lugar incerto e sinistro. A dimensão parecia desproporcionada para o que idealizei como cidade e como espaço de bem-estar social. Aprazível somente a luz que irrompia tão prematuramente. A música do rádio vomitava uma batida electrónica elementar, deixando o condutor ufano pela modernice que julgava exibir. Na arquitectura o pasmo foi maior, as obesidades suburbanas misturavam os prédios vetustos do tempo soviético, opondo-se aos edifícios muito modernos, de desenho arrojado, de arquitectura dominada pelo envidraçado, de duvidosa estética. A combinação revela-se pouco harmoniosa, embora a longa avenida continuasse a ser intercalada num dos seus flancos por árvores. Arranha-céus e portentosos painéis de publicidade – alguns de grafismo piroso –, foram antecipando a chegada ao centro; atravessado o rio avistei algumas colinas, muito verde, e nas ilhargas, prédios, edifícios altos e esboroando-se de vetustez.
Kiev exibia-se estremunhada, esparsas pessoas percorriam-na, mas alguns carros iniciavam a cruzada de mais um dia, não obstante ser fim de semana. O sol brilhava, mas os termómetros em placares electrónicos indicavam os ainda arrepiantes 3 graus positivos – convém distinguir porque pode descer abaixo de zero. Gélida a recepção, fria a impressão, quase de decepção, de justificar a interrogação: que faço aqui? Onde me meti?