quarta-feira, maio 23, 2007

Abril Visto da Luz


Porque ficaste tanto tempo nesta fastidiosa espera? Já eras minha no mundo feérico, quiçá eu pertencia-te. Agora não me restam dúvidas.
A minha pátria não é a língua portuguesa, nem esta ilha, nem lugar nenhum que não me abrace num afecto sentido e caloroso. Senti-o agora, extasiei-me noutro mais oriental, mas esse não revelo. Sacralizo recantos assim, em mim, na saudade.
Sou de onde me sinto bem, e contigo sinto-me em casa, não na minha, mas na definitiva morada terrena que me quer. Desejo em ti morar. Éden não és, esse idealizo num Leste que me habita. Talvez sejas Shangri-La, e sê-lo-ás após expiar os meus pecados, para, impoluto, voltar a pecar sob a tua alçada. Pecar sim, errar na vida que tu encerras, tão inebriante e avassaladora como jamais supus. “La bohéme” de Aznavour canta-te catita, jovial, mulher-bela.
Queria-te mais tempo em mim para me assaltarem saudades da tua aura, dessa efervescência que me contém o grito, que me detém ledo e me chama; quero sentir a tua ausência. O apelo de um regresso.
Lembro-me que quando te evocavam, estremecia de emoção. Que razão? Não há razão, apenas emoção. Délicatesse, que marca! Magia que te atavia, charme que te aromatiza, afectos que te acariciam nos assentos do espiritual ócio ou na profana ocasião de uma pausa.
Agora entendo a minha entediante vivência rodeada pelo abjecto preconceito, e pela vaidosa ignorância que caminha lado a lado com a primeira, conspurcando a minha estrada. Conluiadas, grassam em lugares que lhes auguram sucesso frívolo, mas no âmago, a imbecilidade germina profusamente, na mesma proporção, ou em jorros de uma preocupante iliteracia cultural.
Arre!!! Larguem-me fantasmas!, volta minha donzela, exala o teu calor fraterno e irriga-me de Abril, mês predestinado que muitos trovaram sem saber que no teu vinte e cinco, a esperança renasceria. Respiro o mesmo ar que vos alimentou o exílio, percorro as mesmas avenidas, ruas, praças, sento-me em recantos, degraus e patamares que vos acolheram na sala-de-estar da fraternidade. Ouvi-te na voz de Ella e Louis e amei-te. És o pulsar de um mundo que eu implorava, e eras tu ali tão perto. Quase em ti tropeçava, sobretudo nos dias em que a ilha sufocava até mais não, e a gaivota que me viria dar a asa, tardava, liberta como eu imaginava, alva como a neve dos Alpes que te acenava, sobrevoando as águas serenas que deslizavam e te sorviam a fragrância, cursando por vales suaves e libertos, apanhando-me neste abraço despojado e intenso, de tolerância fina e nobre, em cada gesto, em cada olhar. Que bom é existires. Plural. Eu sabia que havias algures. Felicito-me por te ter encontrado. Até breve. Merci.

quinta-feira, maio 17, 2007

Artistas Anónimos


Paris musician in louvre metro station - Michel Setboun

A sobrevivência nesta montanha russa de variações imponderáveis, cada vez mais acelerada, é uma epopeia que, na iminência de qualquer distracção pode projectar-nos para a penúria, em que as subidas, as descidas abruptas, os súbitos loopings e toda a dinâmica física nos faz fremir num carrocel possesso, que rodopia, ensaia milhentas manobras que, sem o mínimo de requisitos de segurança, nos relega para a margem da dignidade, numa autêntica cruzada contra esta velocidade vertiginosa. No entanto, a capacidade de adaptação do ser humano é notável e em condições extremas somos capazes de rebuscar no baú dos nossos andrajos humanos, força e engenho para superar adversidades.
Trocar a vida rural cruenta de um país cuja esperança era uma utopia, em que a maioridade era sinónimo de apronto para a guerra colonial, uma batalha sem explicação, de razões dúbias para aplicar um eufemismo, mais valia desenraizar prematuramente e procurar outras venturas. No entanto, o sucesso não contempla a todos, por acasos arbitrários, por razões que a razão nem sempre explica. E na urgência, há que descortinar um talento latente, um atributo a potenciar, uma predestinação.
O desenvolvimento de talentos, nomeadamente para a música, pintura, e outras artes, algumas circenses de rua, afigura-se como potenciador de saídas profissionais para muitas pessoas que, entre vegetar numa ignóbil e precária existência, submetem-se ao julgamento dos passantes frenéticos do nosso quotidiano, oferendando-lhes arte, espectáculo, virtuosismo, e o que a imaginação prodigalizar. Destes, destaco os músicos solistas que descem até aos metropolitanos e, munidos de acordeão, guitarra, saxofone ou alguns instrumentos insólitos, oriundos de outras ancestralidades, vertem sonoridades que nos surpreendem pela mestria da execução, pelas melodias que ombreiam com as dos melhores executantes. Edith Piaf era cantora de rua, Compay Segundo foi repescado num período maduro da sua carreira de rua, para não citar outros exemplos.
Quando me deixo enlear pela melodia, pela atmosfera de um regresso ao som destes criadores gratuitos, não deixo de pensar na dádiva destes homens e mulheres, sempre afáveis e fraternos, procurando envolver os viajantes numa esfera de alegria e descompressão. Nos dias de melancolia, são eles que nos enchem a alma, relembrando-nos do seu reportório, clássicos da música erudita, standarts do jazz e outras músicas populares de outras longitudes que evidenciam o cosmopolitismo das grandes metrópoles. Não se contêm a oferendar o seu sorriso, não obstante os sulcos faciais que adivinham vidas sofridas; poucos imaginam o que está para além daquela aparente jovialidade, quanta força interior é requerida por umas parcas moedas… vagueiam de linha em linha, de vagão em vagão, indiferentes à iníqua e desigual distribuição de riqueza dos que os circundam e escutam na indiferença, uns perturbados, outros imensamente gratos que, com ou sem donativo, lhes reconhecem o talento e a missão em feições veladas de satisfação.
Estes anónimos, alguns de forte magnetismo e dotados de recursos virtuosos admiráveis, iluminam o nosso quotidiano, povoam os metros de cidades mais extensas e populosas, curiosamente mais caracterizadas pela ansiedade, stresse e frenesim, contudo, são estas almas errantes que, por comparação com a nossa ditosa realidade, nos irrigam de felicidade pelo conforto egoísta de sabermos que outras indigências vagabundeiam com decoro, tocam e executam com brio. Em lugares onde a estupidificação humana não resultou de uma hierarquização grosseira de acordo com as oportunidades mundanas, estes normalmente destinos onde a cultura é abraçada e ovacionada, onde a gentileza humana priva com a indigência e com estes artistas, integrando-os numa sociedade tolerante e justa, estes homens/mulheres são reconhecidos e gratificados, fazendo parte de um mundo que os insere na sua dinâmica.
Muitas vezes apetece-me aplaudi-los, encetar um diálogo com eles, mas detenho-me. São partes indissociáveis deste quotidiano frenético, mais integradas onde a cultura e a música são artes que a sociedade privilegia e valoriza. Infelizmente não é a nossa portuguesa.
Observo-os disfarçadamente em cada regresso, receio que a minha condição adivinhe no meu olhar, o desdém ou a provocação que não sustento. Olho-os com comiseração, mas sobretudo com respeito e admiração. Com enlevo até. Temo ainda que o deleite com as suas actuações e arranjos melódicos se expresse em demasia, obrigando-me à dádiva que, no fundo, perseguem legitimamente, donativo a que têm direito de forma democrática e voluntária. E se muitas outras actividades socialmente agigantadas e obscenamente remuneradas fossem objecto de apreciação e recompensadas de acordo com a satisfação e mérito causados nos outros, muitos compaginados com o sucesso viveriam na precariedade pária e crua. Artistas deste quilate, seriam ilustres de uma sociedade diferente, porém, a sua dádiva incondicional não pode ser desprezada, e estes anónimos são para mim, estrelas, verdadeiros artistas, a milhas de todos esses lacaios, trajados de importância mundana, empoados com maquilhagem de ignorância, cuja forma de arte se manifesta em obsoletas posses sem melodia.

sexta-feira, maio 04, 2007

Abril de Revolução


Não obstante a distância, o tempo não esbate o significado de Abril nem as conquistas que estiveram subjacentes à sua prossecução. Ainda ontem comemorou-se o dia mundial da liberdade de expressão, um dos desígnios de Abril que, ao invés das expectáveis profecias de então, prenunciadoras de um respeito crescente e irredutível desta causa, vêm agora revelar que os retrocessos nesta liberdade são uma realidade atroz, e assumem mesmo contornos preocupantes numa Europa dita democrática. Consequentemente, continuo a reviver Abril com a mesma emoção, sinto-o hoje tão perto, pela urgência com que se apela a uma réplica da revolução, para que não se esqueçam valores basilares da democracia, episodicamente esquecidos e violados.
A opressão aos dissidentes de hoje é efectivada de modo mais camuflado, umas vezes por afastamento compulsivo e orquestrado de uma carreira profissional ou manifestando-se em pressões que marginalizam e amedrontam ante os cenários humilhantes que os ardilosos maquinam para dissuadir os contestatários e oponentes ao populismo (forma ilegítima de democracia) de levar avante ideais de Abril. Existem formas subtis e viperinas de exercer chantagem, de utilizar sofismas hábeis que tolhem a autodeterminação de um indivíduo.
Pela passividade intelectual do povo, Abril vai sendo esquecido, negligenciado por gentes que se preocupam mais com as cenas da próxima intriga novelesca da televisão, ou as incidências de um reality show, atentatório da boa sanidade mental; com a indumentária da colega, ou as incursões da vizinha nas suas intrigantes hospitalidades masculinas. Todavia, a liberdade permite-nos optar entre a aceitação deste lixo mental, vigente na sociedade, ou um renunciar à imbecilização que se pode revelar pela apetência pelo conhecimento, por uma forma lúcida e determinada de contribuir para uma reflexão cívica, de aprimorado sentido crítico.
Abril ainda se me inunda de fragrância floral dos cravos, insuflando-me de coragem para expurgar a repressão, as injustiças, a mordaça que aludi e que obsta a que nos exprimamos livremente. Abril continuará a relembrar a revolução pacífica, onde as armas expelem flores, mas este ideal de liberdade, este fito cada vez mais utópico, caminha trôpego, definha em cada náusea de um político, no oco apelo à seriedade de um qualquer governante amoral, isto para não citar a demência, porque essa, merece um sentimento de complacência, e uma advertência a quem, na obscuridade mentecapta, confunde-a como luta acutilante por direitos e justiça, na estratégica e despudorada criação de um inimigo no exterior que está na iminência de atacar, para unir as hostes que o rodeiam. Até quando é que vamos permanecer neste marasmo?
Emociono-me com Abril, longe, onde estiver, mas indubitavelmente, carecemos de uma nova revolução. Outra! Não se pode progredir num país onde se premeia a fidelização incondicional a sistemas de ascensão fácil, ao invés da verdadeira competência e assunção plural e profícua de ideias. As assimetrias sociais são cada vez mais evidentes, obscenas. Para mim, é risível a postura importante de gente que rasteja no lodo da ignorância, e que, por vassalagem a conveniências, são incapazes de ganhar o mínimo de percepção da sua ridícula e ignóbil promoção que os torna reféns de boçais indivíduos que dispõem deles a seu bel-prazer. Em que país vivemos? Vergonha? Isto é mais do que isso, é insultuoso. Reinvente-se a política em Portugal, por Abril, pelo espírito da Revolução, pelo futuro que teimo em acreditar, harmonioso e próspero.
Viva o 25 de Abril! Sempre!