terça-feira, fevereiro 02, 2010

Almas Mortas


O título parece fúnebre, macabro, funesto, ou uma simples apologia à morte ou ao mito das almas. Mas as aparências iludem. Efectivamente a morte tem uma conotação negativa, normalmente dissuade, repele, provoca aversão. Neste caso o título remete para uma obra de Nikolai Gógol. É o livro mais célebre do escritor russo nascido em território ucraniano. Nele sobressai um herói que, tem tanto de sedutor como portador das mais desvairadas falibilidades humanas. Falibilidades que, no contexto de uma Rússia esclavagista, pareceriam arcaicas no nosso mundo actual, mas, surpreendentemente revelam-se de uma actualidade aterradora. Tchitchikov, o protagonista, é um viajante que se aventura por uma Rússia epidémica, infinita, seduzindo pela etiqueta e prestimosas cordialidades. Segue no encalço do inverosímil. Durante as investidas do herói, são descritas personagens de perfis roçando o absurdo, com uma mestria inimitável, caricaturando a Rússia ou a natureza humana mais primária. Ninguém é poupado à contundente narrativa, à acutilante capacidade imaginativa do autor. A Rússia afigura-se povoada por um antro de gente medonha, fleumática, ou por bandoleiros, charlatães, inscientes e pacóvios. Há uma interactividade do autor com o leitor, incomparavelmente bela, única, uma marca que, aliada ao domínio dos diálogos, embevece qualquer leitor mais exigente. Quanto às almas, essas não são mais que servos que, na Rússia ainda medieval da época, estavam sob o jugo de grandes proprietários, subalternos de um regime feudal esclavagista. O primor das descrições exibe a identidade autêntica desse país encantador onde a grosseria pode contrastar com a hospitalidade mais extremosa e amiga. A Rússia é descrita com arte, com uma sátira poderosa que alicia quem aprecia o género. É notável a mestria deste escritor que, numa narrativa apelativa e hipnótica, consegue transportar o leitor por um mundo misterioso, pelas incursões e golpes ardilosos do herói do livro. Há tanto de ironia como de poesia, a narrativa é pura e crua, onde fica expressa a dualidade de sentimentos pela sua Rússia, tantas vezes ultrajada pela ironia e pelo humor sarcásticos impresso na sua escrita. A segunda parte do livro resulta de uma recolha dos restos do segundo Tomo, grande parte queimado a mando do autor. Se a literatura russa já figurava no pedestal das melhores, Gógol, com o seu “Almas Mortas” reforça a sua excelência e, no meu caso pessoal, impele-me para mais um plano de viagem que tenha na Rússia o seu desenlace. A sensação de uma terra sem fim, sem peias nem barreiras, a severidade desta imensidão criam uma apetência única a quem nasceu envolto na imensidão da água. Se puderem, leiam Almas Mortas, a culpa não é minha, como diz o autor, a culpa de toda a trama é apenas e só de Tchitchikov. Não percam este livro que, na minha opinião, talvez a par de Margarida e o Mestre de Mickail Bulgakov, foi o melhor livro que li da literatura russa. Uma obra-prima imperdível!