domingo, junho 29, 2008

Primavera Croata



Na esperança verdejante emergente, desabrocha a subtileza colorida das flores, ataviando a cidade e oferendo a generosidade de assentos ou a macieza de um relvado. Um bálsamo refresca-me os olhos e o bulício da urbe é atenuado pela inconstância dos prédios que, nesta estação, gozam de uma indumentária festiva, as vestes conferidas pelos jardins e praças que mascaram as fissuras e fendas do passado. Se não fossem os discretos cartazes, teria dificuldade em acreditar que eram tão numerosas as salas de teatro. Nem os ajuntamentos à porta, no prelúdio de um acto, me fariam desconfiar que pululavam as salas de representação, tal era a saudável convivência de jovens e menos jovens, aglutinados nas entradas, exibindo um magnetismo sadio. Aqui reina o verde, os teatros, os museus, os candeeiros jactantes e gente moderna e simpática. A segurança mora em todas as guaritas da cidade. Senti-me como num qualquer destino nórdico, daqueles que se tem como ideal de referência, quer na segurança, quer noutros detalhes que qualquer viajante acautela. Mas aqui, ao contrário de lá, não há emigração nem imigração. Este equilíbrio traduz a satisfação do povo com o seu país, jovem, patente nos rostos bonitos e na indumentária elegante que os usos ajustam aos corpos. A expressão das pessoas irradia confiança e bem-estar, e não é para menos após visitada a cidade. O croata é sociável e viciado em café. Por tudo e por nada encontra pretexto para uma pausa com essa finalidade. E não são para dois dedos de conversa, como cá se diz, mas muitos mais. Estas pausas são saboreadas numa parte da cidade que se pavoneia de ser mais moderna. A outra, no passado votada a residência de trabalhadores, é onde se instalam os serviços governamentais, a verdadeira Zagreb: a cidade velha que encanta. Lá somos levados, para quem conhece, a Praga ou à margem esquerda do Danúbio, em Buda, na cidade de Budapeste. É pequena a dimensão, mas é grande o enlevo. Com a vantagem: sem as multidões das últimas cidades citadas, podendo assim recriarmo-nos a descobrir a identidade da cidade de Tomislav, salva de um incêndio e do ataque do império otomano, por intervenção divina de Nossa Senhora., a fazer fé nas crenças mais profundas de um povo maioritariamente católico. A esta divindade é prestado tributo no interior do arco de pedra que sobrevive ainda como a entrada principal da cidade medieval antiga. Quanto ao rei, volta a comparecer na entrada da saudosa urbe, novamente a cavalo. Não vá o divino descuidar-se, pensará ele na sua laicidade.

Zagreb estava longe de ser o destino que mais expectativas havia despoletado. Agora estou seguro de que é talvez a cidade, de entre todas as que visitei, que escolheria para viver. Aqui encontro qualidade de vida, à qual apenas adicionaria a comida portuguesa e a língua que nos apatria. Estudos asseguram que viver no interior, numa latitude contemplada com clima temperado, traz mais benefícios para a saúde do que os destinos no litoral e aqueles mais amenos e aparentemente agradáveis. Os Invernos extremos são aquecidos pela cor que as floristas abundantes na cidade oferecem. O povo vive congeminado com as flores, não apenas nas que adornam os jardins, mas sobretudo o culto diário pela aquisição de arranjos. Os ramos são de um recato e bom gosto de embevecer. No litoral do país, asseguraram-me não ser assim. Estes eslavos do interior, em que Zagreb se situa, na confluência com o mediterrâneo, evidenciam este culto floral que dá uma graciosidade especial às ruas, a quem as ostenta, e nas casas onde vão colorir e derramar primavera. Na ausência destas, existem outras andantes que humilhariam as irreais ninfas dos descobrimentos.
Sem-abrigo, nem vê-los. Não avistei um para amostra. Pedintes ou afins, daqueles que por cá cravam moedas ou tabaco, tão-pouco. Na pior (que para mim é a melhor) das hipóteses, apresentavam-se como músicos de rua ou de alguma forma, artistas de qualquer disciplina. Não me espantei quando um destes músicos de ocasião confraternizava com um turista, fraseando um inglês fluente. Aqui praticamente toda a gente domina o inglês, seja a caixeira de supermercado, a vendedora de fruta ou qualquer circunstante que estancia num dos imensos e idílicos jardins com aspecto de bosques.

Ainda se assiste a concertos clássicos em traje de gala, ou próximo disso no caso dos jovens que, não tão clássicos, exibem a elegância própria da idade.
As vias para as bicicletas crescem e o zagrebino adere progressivamente revelando uma notória e crescente aproximação aos padrões comportamentais escandinavos. Porém, sem os automatismos maquinais de alguns povos que fazem deste hábito, uma rotina. Resquícios de conflitos recentes, nem vê-los, até porque a capital foi apenas atingida por duas bombas, e não esteve na encruzilhada da guerra dos balcães como as cidades de Sarajevo, Pristina, ou mesmo Belgrado na vizinha Sérvia. O comunismo deixou o melhor legado, entre os aspectos positivos que se lhe podem atribuir, acompanhando-o na queda, uma sangrenta fragmentação da federação jugoslava que ajudou a construir. A cidade é jovem, tem um frenesim próprio, saudável, que conquista os turistas que, nesta paragem, não abundam. As obesidades típicas dos subúrbios são substituídas aqui pelas moradias unifamiliares, e por um verde imenso que galga suavemente a encosta da serra. Não substituo as memórias de Zagreb por nenhumas outras. São indeléveis.

quarta-feira, junho 18, 2008

Chegada ao Reino de Tomislav

Oriundo de terras bávaras, onde o casario se deixa coroar por funestos telhados negros que se opõem ao verde dominante, a descida despercebida do avião estarreceu-me quando, acordado do enfado da viagem, avistei telhados de vermelho garrido em pequenas e singelas casas dispersas, salpicando uma paisagem rural de relevo incerto e mosaicos assimétricos. O planar do sopé de uma montanha revelou a lisura de um encosta que reconheci outrora em guerra, ou não fosse ela o pano de fundo de inúmeras reportagens que anunciaram sórdidos combates e terror. Emergiu alguma fealdade, à medida que a concentração de casas deu lugar a altos e funestos prédios sem harmonia, à medida que a densidade das moradias desvelava a urbe. Zagreb espraiava-se no meu olhar. Acto contínuo à normal aterragem, encontrava-me no interior de uma aerogare digna, mas sem brilho. Desde a passagem nos serviços transfonteiriços até apanhar a bagagem foi um instante. Lá fora perscrutei todos os cantos em busca de informação sobre câmbio. Nada, as poucas casas para o efeito apresentavam-se apinhadas e porque a fome apertava, encontrei uma máquina automática. Levantei o que a intuição me sugeriu: 300 kunas. Julguei suficientes para me fazer à cidade e para qualquer gasto imprevisto. Lá fora fui surpreendido pelo verde envolvente, onde a Primavera já explodira na sua plenitude. Aquiesci: um clima assaz amigo para esta chegada. Todavia, o cauto aconselhou a não afeiçoar-me a qualquer assombro prematuro. Zagreb, como cidade, evocava conflito, e, de certo modo, ia preparado para tudo. Foi fácil descortinar um meio de transporte até à cidade, disponível num autocarro guiado por um sujeito de trejeitos másculos. Pelo caminho, em 20 min de viagem atravessei o Rio Sava, além dos mais alcandorados edifícios sem estética que ladeavam o rio que a cidade não abraçava. Esta tinha uma vocação mais montanhista.

Daí até estacionar e iniciar a minha orientação na cidade, foi um fado. As informações eram deficitárias e os mapas da estação central careciam do providencial e útil “você está aqui. Meti por um passeio até à linha dos eléctricos que normalmente se encontra no trilho dos centros, e aí tomei uma imensa avenida marginal que, no dizer do mapa, me levaria à rua pretendida. Fui flanqueado por graffitis que me prognosticaram o pior cenário. Sempre associei esta arte (que respeito) à prevalência de problemas sociais e violência. Vetustos prédios ensombravam o meu caminhar e certamente eram vestígios do comunismo, incorporando uma arquitectura gélida e informe. Até à rua estipulada, precisava de comunicar com um tal Sr. Dinko Morovic. Pelo caminho, numa rota pouco afável ao recém-chegado, a impressão foi de pobreza e miséria. O progressivo caminhar foi exibindo um decrescendo de indigência, que dava lugar à modernidade que já conheci em longitudes do Leste Europeu. Esta impressão derivava do esboço que fui lendo nos rostos que se me cruzavam, patenteando auto-confiança e assertividade. Os femininos exibiam uma beleza infinita. E se necessidades fisiológicas me obrigaram a alienar das observações preliminares, não fiquei indiferente ao verde que quebrou a desarmonia inicial, nem à confortável segurança que me foi rodeando, enleando a minha chegada.

Ainda não o conhecia, mas o rei Tomislav, perpetuado na estátua equestre, saudou-me à chegada, porém, por entre o bulício formigueiro que efervescia da estação de comboios que ele velava, e a não habituação a recepções régias, alienei-me do seu acolhimento.
Posteriormente redimi-me do sacrilégio e compensei o Rei e os seus outrora súbditos.