sábado, novembro 01, 2008

Ele anda por aí


Amanheceu e Praga dilui-se num cenário etéreo quedo. Uma bruma desceu à cidade acompanhada por um frio gélido que fez urgir um esconderijo para as minhas mãos na saída, habituadas que estão a climas sub-tropicais. A temperatura atreveu-se a descer abaixo de zero. Que desfaçatez! Circulando sobre mim próprio, não vislumbro para além do primeiro quarteirão e essa barreira avoluma o insólito da cidade das mil torres. É possível avistar apenas as cúpulas, mesmo que esbatidas por esta densa névoa. Nesta atmosfera propícia, Kafka decerto já fez a sua aparição, pressinto-o tão perto, mas qualquer tentativa de lhe seguir o encalço, gora-se. Ele evola-se como o rio Vltava de hoje, tão gasoso e dissolvido que banha de bruma as margens. Este estado faz empalidecer os contornos da cidade e, nesta suspensão absoluta, sinto a urbe devolvida àqueles que, noutras épocas, a glorificaram. Recordo esse famigerado e enigmático personagem de Franz Kafka, mas ainda Smetana, Dvorak e o inefável monarca Carlos IV que foi um dos principais precursores deste assombroso primado que todos contemplam embevecidos. De entre eles, sei que Kafka ainda vagabundeia por aí, ubíquo; desce o castelo, calcorreia a calçada da cidade velha, evita pontes apinhadas de gente, passando a errar na cidade nova, perdendo-se nas vielas, nas encruzilhadas deste povoado místico. Fá-lo em trajes de antes, mas a sua imagem é um espectro indiscernível. Se qualquer silhueta emana dessa deriva, é um sobretudo que tento resgatar no dobrar de uma esquina, mas a manga escapa-me e não me deixa ver o rasto. Talvez ecoe o sapateado dum personagem apressado que se escuta a desmaiar, mas, volvidos instantes, parece vir na nossa direcção numa toada crescente que, na raia de nos abalroar, parece esquivar-se repentinamente e derivar por outra rua, perdendo-se numa passada audível só para os crentes. Em meu redor assinalo a presença de pessoas pouco preocupadas com estas aparições (incréus?), fotografam sem cessar e não se apercebem da atmosfera que está para além do que as objectivas captam. Não serão emulações de gente que, na época, não compreenderam os desvarios de Kafka? E se Kafka ditou que a sociedade da sua época era absurda e resvalava para o abismo, prevalecendo os medos e as perseguições, aliados a crises de existência e solidão, que sociedade teremos nós agora? Quantos a compreenderão e tomam a sério o legado de Kafka? Prefiro alienar-me dessas inquirições e imiscuir-me neste mundo feérico, antes que o galopante ditador do tempo me alerte para a despedida. Sinto o cheiro a castanhas, outonal e distante, no ocidente. Para lá irei dentro em pouco. E você, meu leitor? Sabe para onde vai, ou também erra?