sábado, novembro 11, 2006

Renascer



No cimo de uma fraga, contemplo um horizonte enevoado, baço, tisnado de cores pardacentas. Escrevinho umas linhas, exorto as aves marinhas que, grasnando no céu, anunciam um novo dia noutra longitude. Algures onde eu não situo. Perseguem a luz, enquanto eu, imerso num escuro crescente, prossigo a escrita, acompanhado pelo marulhar das ondas, desacompanhado das aves agora sumidas, dos ecos bafientos da civilização liberal, apagados pelo tumulto do litoral… A escrita é pungente, demolidora, ressurgida da escória destes pensamentos ocos que me conspurcam a alma. As ondas recrudescem iradas à minha volta, rosnam de fúria e ameaçam o meu equilíbrio. No topo, cedo ao medo que me tolhe a coragem. A queda iminente não se consuma, embora me sinta inexoravelmente à mercê das águas, da rocha dura que se torna escorregadia e me deixa vacilante num ilhéu de uma ilha. Capitulo ao juízo final, agarrado ao que me resta. Só eles me restam: a caneta e o papel. Cerro os olhos, pego-lhes, vencido, derreado por um torpor que não deslindo. Sou impelido para a escrita, fazendo-o sofregamente, sem parar, expiando este ócio pernicioso que me corrói. Nas trevas, a caneta não cessa, prossegue e aliena-me da tempestade. Rascunha possuída, possessa. De entremeio, leio no escuro as palavras soltas, desconexas, familiares entre si. Separo-as em grupos, oriento-as pelo astrolábio das estrelas, arranjo-as em frases, parágrafos fecundos, textos que recolhem a harmonia do porvir. Não me dou conta do passar das horas, da lucubração desta noite escura, ou da depuração da luz que ressurge no horizonte, resplandecente, irisada nas margens das nuvens esparsas que se esquadrinham no meu olhar. Os pássaros preludiam as laudes e gracejam em rodopios pueris e alvos, enquanto eu, purificado, regresso devagar, sereno, resolutamente ao encontro do desfiladeiro que me enleia e acolhe como um filho pródigo.

Foto: Duarte Olim