sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Traz Outro Amigo Também


Quão longe vai a tua partida, tão efémera parece ter sido a tua mensagem. Esquecida, negligenciada, injustamente perdida nos antros da memória, reduzindo-te a mero cantor de intervenção, porém, foste distinto compositor, foste cantor universal, foste trovador, poeta, clamaste justiça e liberdade. Sublimaste líricas, uma infinidade de melodias musicadas ao vento, cantadas à liberdade que urgia, ao mundo que efervescia, à alma do povo oprimida, coagida por ardilosos instigadores, belicosos e marginais que não calaram a tua voz. Conheci-te tardiamente, e na alvorada da vida, não tive a noção de quem tu eras, quem tinhas sido, por quem lutavas; recordo apenas que sem aviso, partiste. Atrás ficou uma marca indelével que me orienta, que escuto com arrepio, que me acrescenta coragem e me impele a dizer não! quando tem de ser; que me faz erguer a voz contra imbecis e medíocres mentes que do beija-mão chamam profissão.
Ouvi-te na sedimentação do meu ser, e contigo assimilei princípios que evocavas nas tuas canções: cantaste Abril, cantaste a liberdade, cantaste o amor, cantaste a poesia, cantaste Portugal e cantaste um espírito perdido, uma significação partilhada que era a solidariedade, perdida na avareza liberal, no que ao betão chamaram desenvolvimento.
Que falta nos fazem cantores de intervenção, cantores universais por causas germinados, cantores que reclamem a harmonia, trovadores que gritem Liberdade! e desmascarem esta farsa de democracia apelidada, que acentua o fosso entre pobres e ricos, que da impunidade e dos vícios, alimenta boçais fascistas, e do populismo, irmana uma religião insana, putrefacta e ufana.
Sedentos de amigos estamos, que evoquem os teus ideais e tragam outro amigo também para esta luta, pela liberdade ameaçada todos os dias, pelo futuro, pelo nivelamento desta sociedade pervertida por assimetrias obscenas, Vem! traz outro amigo também e não tenhas medo da verdade; dignifica a voz, a mensagem, a coragem, o desígnio de José Afonso.

sábado, fevereiro 17, 2007

Esboço da Alma da Melodia


Há muito tempo que busco o ensejo de escrever ao som de uma música. Certas sonoridades resultam como verdadeiros catalizadores de inspiração, tipo enzimas que transformam uma visão supérflua e insignificante, numa sublimação de pura poesia e encanto. Num feitiço mágico, varre-se-me todo a amálgama de escória que sobeja deste quotidiano, e qualquer observação ultrapassa o sentido estritamente visual, desembocando numa contemplação feérica, apaziguadora das minhas convulsões mais profundas. Sou levado pela brandura de uma bola de sabão que se eleva nos céus numa tarde amena de qualquer estação, enquanto à minha volta, o mundo ganha contornos coloridos, irisados pela película sensível que me protege periclitantemente; por ora a música atinge o seu auge, como se ela traduzisse o momento em que alcançamos o alto da nossa vida, num rasgo de plenitude onde a inflexão está iminente e graceja com ironia. Vogo nas alturas, errando na leveza da atmosfera onírica. As notas agudas dos violinos recrudescem e anunciam a germinação de novas vidas, na puerilidade graciosa das suas variações, enquanto os graves do violoncelo assomam desapiedados, neste interlúdio que alerta para a finitude desta bola, da sua frágil camada que perde brilho e esplendor, na cadência lenta da melodia que se vai aproximando do termo, corroborada por este piano que toca esparso e ausente, abreviando a visão que já não era deste lugarejo que me peia os dias, mas uma ilimitada amplitude que me levou a espreitar a essência de tudo. Simples e bela a viagem, mas efémera como a protecção da película cristalina que se esvai à medida que as cordas cessam, e o piano se silencia, soçobrando um eco suave e distante do último violino que, em lamentos cada vez mais sumidos, finda a miraculosa melodia e me restitui a este recanto que me alberga, tão longe do interior onde esta música me levou.